sexta-feira, 14 de maio de 2010

Liberte-se da escravidão mental!

O começo do século XXI veio acompanhado da força dos movimentos étnicos, de gênero, culturais, ambientais e daqueles que defendem seus direitos frente à arbitrariedade do poder sistêmico (Estado-Leviatã). De fato, a referida resistência demonstra que a democracia não forma parte do capitalismo. Nesta senda, sedimentando a adoção de uma racionalidade de resistência – que não nega a possibilidade de chegar a uma síntese universal das diferentes opções relativas aos direitos e, tampouco, descarta a virtualidade das lutas pelo reconhecimento das diferenças –, leciona Joaquín Herrera Flores:

“por ello, proponemos un tipo de práctica, no universalista ni multicultural, sino intercultural. Toda práctica cultural es, en primer lugar, un sistema de superposiciones entrelazadas, no meramente superpuestas. Este entrecruzamiento nos empuja hacia una práctica de los derechos insertándolos en sus contextos, vinculándolos a los espacios y las posibilidades de lucha por la hegemonía y en estrecha conexión con otras formas culturales, de vida, de acción, etc. En segundo lugar, nos induce hacia una práctica social nómada que no busque puntos finales al cúmulo extenso y plural de interpretaciones y narraciones humanas. Una práctica que nos discipline en la actitud de movilidad intelectual absolutamente necesaria en una época de institucionalización, regimentación y cooptación globales. Y, por último, caminaríamos hacia una práctica social híbrida”[1].

Devemos romper o(s) conceito(s) de democracia imposto(s) no desiderato de (re)definir o significado da palavra, uma vez que a atual ordem sistêmica possui a capacidade para construir conceitos e colocar-los em circulação de forma rápida e eficiente (objetivo de transformar a democracia em um bem de consumo social e projetar uma imagem para organizar a vida cotidiana). Ora, a fórmula da democracia será usada incansavelmente para que os destinatários finais do conceito (leia-se consumidores) acreditem (conscientemente ou não) na possibilidade de possuí-la.

Ao revés: a luta democrática supõe a necessidade de pensar a democracia desde os valores éticos e de compromisso com a defesa da humanidade. A democracia é uma prática plural de controle e exercício do poder desde o “dever ser do poder” (incorporando o sentido ético da condição humana)[2]. Ou, como esclarece o argentino Ernesto Sabato, “a democracia, mais do que permitir a diversidade, deveria estimulá-la e exigi-la. Ela necessita da presença ativa dos cidadãos para existir, pois do contrário é massificadora e gera indiferença e conformismo. Vem daí a esclerose de que muitas democracias padecem”[3].

É urgente, pois, nossa atuação política, cultural e social na abertura de espaços de comunicação, diálogo e participação, estreitando laços e aprofundando as relações no âmbito da família, do bairro, da comunidade, para que o poder de decidir nossos rumos e destinos fique nas mãos de todos e todas[4]. O objetivo de uma política democrática, portanto, não é erradicar o poder, senão multiplicar os espaços nos que as relações de poder estarão mais abertas à contestação democrática.

Devemos abandonar o individualismo (umas das características mais importantes da ideologia moderna e da sociedade atual) que considera o ser humano como indivíduo absoluto e centro autônomo de decisão. Essa idéia de que a iniciativa individual e os interesses particulares são o ponto de partida e o motor da capacidade econômica ocasiona na destruição dos elos sociais, no individualismo egoísta, na competição descontrolada e na luta brutal pela sobrevivência. De fato, assevera Joaquín Herrera Flores, “el último tercio del siglo XX fue el inicio de una etapa de ceguera frente al continuo proceso de definición y redefinición de identidades colectivas y de prácticas sociales que habían encontrado su modus vivendi en el marco de la guerra fría entre dos sistemas contrapuestos”[5].

É preciso fornecer uma alternativa para o sistema de valores e significados estabelecido oficialmente, afinal “al considerar lo político como algo ajeno a las luchas por la dignidad humana se dejó en suspenso todo lo que depende de la política en su dimensión de relaciones de fuerza, de alteridad, de adversario y de antagonismo”[6], ou, como sugere, Michael Löwy, “formar um novo tipo de comunidade que necessariamente incorpore algumas das liberdades modernas mais importantes, a começar pela livre escolha de participar ou não dela”[7].

Necessitamos apostar por uma concepção ampla e não fragmentária da ação! Uma atividade compartida com os “outros” no momento de criar vias alternativas as existentes, no desiderato de lograr um forma de solidariedade que promova e estimule atos livres a serviço do bem comum (e não de particularismos egoístas).

           Eis o clamor de Chantal Mouffe que punga pelo retorno do político:

“o político não pode ser limitado a um certo tipo de instituição ou encarado como constituindo um esfera ou nível específico da sociedade. Tem de ser concebido como uma dimensão inerente a todas as sociedades humanas e que determina a nossa própria condição ontológica. Uma tal concepção do político está em profunda contradição com o pensamento liberal, sendo precisamente esta a razão do espanto deste pensamento quando se vê confrontado com o fenômeno da hostilidade nas suas múltiplas formas. Isto é particularmente evidente na incompreensão dos movimentos políticos, que são vistos como a expressão das chamadas massas”[8].

Urge, pois, a mobilização social como movimento anti-sistêmico para operar novas linhas de potência emancipadoras objetivando a criação de sistemas paralelos de poder em prol de uma ampliação e efetivação dos Direitos Humanos.

Tudo para que ao final cantemos ao lado de Bob Marley canções de liberdade que nos permitam libertar-nos da escravidão mental imposta por um sistema hegemônico (que classifica a atual conjuntura como natural e indiscutível) e lutar por melhores condições na hora de ascender aos bens indispensáveis a uma vida digna:

“liberte-se da escravidão mental; ninguém além de você pode libertar sua mente; não tenha medo da energia atômica, porque eles não podem parar o tempo; por quanto tempo vão matar nossos profetas, enquanto nós permaneceremos de lado olhando; Sim, alguns dizem que é apenas uma parte de nós temos que cumprir o livro”[9]

Por: Prof. Ruben Rockenbach



[1] “por isto, propomos um tipo de prática, não universalista nem multicultural, senão intercultural. Toda prática cultural é, em primeiro lugar, um sistema de superposições entrelaçadas, não meramente superpostas. Este entrecruzamento nos conduz em direção a uma prática dos direitos inserindo-os em seus contextos, vinculando-os aos espaços e as possibilidades de luta pela hegemonia e em estreita conexão com outras formas culturais, de vida, de ação, etc. Em segundo lugar, induz-nos a uma prática social nômade, que não busque pontos finais ao acúmulo extenso e plural de interpretações e narrações, e que nos discipline na atitude de mobilidade intelectual absolutamente necessária, em uma época de institucionalização, regimentação e cooptação globais. E, por último, caminharíamos para uma prática social híbrida”. (tradução livre). HERRERA FLORES, Joaquín. La reinvención de los derechos humanos. Madrid: Atrapasueños, 2008, p. 13.
[2] Neste sentido: ROITMAN RONSENMANN, Marcos. Democracia sin demócratas. Madrid: Sequitur, 2007.
[3] SABATO, Ernesto. A resistência. Tradução de Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 72.
[4] Neste sentido: MANENTE, Ruben Rockenbach. Democracia não é só voto, é participação popular!. Em: Jornal da Praia – Garopaba, Edição número 103, de 1º a 15 de agosto de 2008, p. 05.
[5] “o último terço do século XX foi o início de uma etapa de cegueira frente ao contínuo processo de definição e redefinição de identidades coletivas e de práticas sociais que haviam encontrado seu modus vivendi no marco da guerra fria entre dois sistemas contrapostos”. (tradução livre). HERRERA FLORES, Joaquín. La reinvención de los derechos humanos. Madrid: Atrapasueños, 2008, p. 68.
[6] “ao considerar o político como algo alheio das lutas pela dignidade humana se deixou em suspenso todo o que depende da política em sua dimensão de relações de força, alteridade, de adversário e de antagonismo”. (tradução livre). HERRERA FLORES, Joaquín. La reinvención de los derechos humanos. Madrid: Atrapasueños, 2008, p. 68.
[7] LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina. Tradução de Vera Lúcia Mello Joscelyne. Rio de Janeiro: Vozes, 2000, p. 102.
[8] MOUFFE. Chantal. O regresso do Político. Tradução de Ana Cecília Simões. Lisboa: Gradiva, 1996, p. 13.
[9] Trecho da música “redemption songs”. Disponível em: www.letras.terra.com.br. Acesso em: 08/05/2010.
 

6 comentários:

  1. Eu amei o texto, e amo qualquer coisa que tente tirar a sociedade desse estado de letargia em que ela se encontra.

    Beijos

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Professores,

    Eis aí um tema que dialoga com o meu rascunho de projeto de dissertação (estou lendo tanta coisa que ainda não consegui delinear o tema).

    Vocês tem algum tipo de grupo de estudo sobre o tema?

    Bjão :*

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  4. Excelente texto!
    Vou reproduzi-lo por aí, ok?
    Abração,
    antonio

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  5. Hum... tem um livro da Ellen Wood - Democracia contra capitalismo, que ja na introducao ela apresenta uma argumentacao interessante sobre o tema.

    (So eh importante salientar antes que a autora eh socialista e eu nao estou aqui defendendo o socialismo como alternativa para nada. Estou apenas apresentando uma referencia para leitura e critica).

    Bom.. mas vamos ver se consigo apresentar a visao da autora pelo pouco que li e conheco de sua obra.

    Ela define que o capitalismo eh estruturalmente antitetico a democracia.
    Na sua logica de argumentacao, se o verdadeiro significado de democracia for considerado: "o governo pelo povo ou poder do povo", no sistema capitalista a democracia se torna incompativel e impossivel de ser vivenciada, tendo em vista a alteracao das esferas da vida social pela esfera economica.

    Ou seja, no capitalismo, os "bens politicos" ficam submetidos aos bens economicos, guiados numa logica de acumulacao de capital e estruturados pelas "leis ferreas" do mercado.
    Assim, a autora questiona: Como discutir diferentes poderes e necessidades da sociedade, se na verdade, o que estrutura a sociedade, num regime capitalista, eh exclusivamente o capital?

    Bom.. saindo dos conceitos e da argumentacao da Ellen Wood, eu so queria parabenizar o Prof. pelo texto. De fato "Alternativas para o sistema de valores e significados estabelecido oficialmente sao urgentes e necessarios".

    Mas alternativas que nao tragam ruptura, na minha visao, tornam-se apenas como antibioticos que nao matam a bacteria. E pior... tornam ela mais forte ainda!

    Abracos
    Prof Monique

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