I. O Brasil é o país com o menor biquíni do mundo, mas é também o lugar onde – pasmem! – ainda se discute se o topless é ou não conduta criminosa (pegue os rídículos manuais de direito penal campeões de venda!). A questão é relevante. Quem ainda não teve sua moral assaltada na praia pela exibição de um desses pares de indecência corpórea? Quem ainda não foi vítima de uma quadrilha de jovens siliconadas que provocaram um arrastão de olhares, enquanto tudo o que queríamos era nosso sagrado lugar ao sol? Quem nos defenderá dessas moças exibidas? Ninguém pode ser obrigado a suportar tanta ostensividade de volúpia!
Enquanto a moça está praticamente nua na parte de baixo, alguns policiais, promotores e juízes estão assustados com a nudez da parte de cima. Se os mesmos seios estivessem à mostra publicamente na função tradicional da mulher – amamentar a criança – esses indivíduos os achariam lindos, seriam capazes até de chorar de emoção. Então, leitora exibida, quando for fazer topless, leve na bolsa de praia uma criança emprestada, para todos os efeitos, seus seios estão ali para alimento e não para exposição lasciva. Garanto que o irritado policial, neste caso, até carregará sua cadeira de praia. Uma segunda alternativa: ao ser flagrada pelo guardião da moral, simule um auto-exame de mama. Diga que é um trabalho social lá da faculdade: mostrar às outras mulheres como se previne o câncer. O policial, neste caso, não só carregará a cadeira, como enterrará seu guarda-sol.
Conta-se que um dos “anões do orçamento”, aqueles deputados que nos roubavam, levantou-se num teatro, vaiando os atores da peça porque apareciam nus. Na visão dele, isso sim era imoralidade. Onde já se viu mostrar-se pelado num espetáculo, só para adultos, às 22 horas da noite! De fato, para isso não há desculpa. Roubar o dinheiro público, tudo bem, é um esporte nacional de elite, assim como o pólo e as corridas de cavalo. É quase um costume jurídico, aquela prática reiterada – ainda que contra a lei – que é amplamente praticada e com a opinio jures necessitatis (a convicção íntima de que se deve fazê-la). Mas tirar a roupa num espetáculo, isso já é abuso de direito, é ato obsceno. Cadê o delegado?!
II. O Brasil é um país contra o aborto. Até mesmo no caso do feto anencefálico (feto sem cérebro), a maioria moral quer forçar as grávidas de fetos, que jamais sobreviverão ao parto, a carregá-los durante nove meses na barriga, apenas para satisfazer as convicções dos carolas de plantão. Cadê o direito à liberdade de crença? Se a sua religião diz que ali há uma alma, tudo bem, eu respeito, carregue sua gravidez anencefálica até o fim. Mas não me force a fazer o mesmo apenas para respeitar sua visão religiosa de ser humano. Isso é violência, é imposição de credo, inadmissível num Estado laico. Estado o quê? Desculpem, agora eu me passei, essa mania de ler a Constituição anda me confundindo as idéias... Estado laico... ridículo...
Se fosse só no caso de aborto anencefálico, tudo bem. Mas este país tão contra o aborto (nos discursos) é também, segundo vários estudos, aquele que mais pratica abortos no mundo. Desde que seja para “limpar a honra” da família, cuja filha engravidou fora do tempo, vale à pena falar com o médico amigo. Como pai, ele entenderá o sofrimento vivido e como aquela gravidez atrapalhará os estudos e a ida a Disney da mocinha de futuro. Aos pobres, que não tem médico de família, restam as agulhas de tricô e a morte, caso alguma complicação haja no aborto amador, já que se procurarem um hospital, o delegado é quem preencherá o prontuário. É fácil às elites serem contra o aborto no Brasil: se precisarem, elas o obterão de forma discreta e clinicamente impecável. A tragédia legal brasileira é justamente essa: só os pobres consultam a lei antes de fazer algo. Os ricos consultam seu bolso. Como disse o milionário americano ao seu advogado: “Eu não estou lhe perguntando o que a lei me deixa fazer. Estou lhe mandando ajeitar as coisas na lei para que eu possa fazer o que eu quero.” Claro, patrão. Só mais uma pergunta: a lei que o senhor quer é mal passada ou ao ponto?
III. O Brasil é também contrário à pena de morte. A maioria da população se diz contra. Acreditam que a pena de morte é ineficaz para baixar a criminalidade (e de fato é). Dizem também que demora muito esse tal de corredor da morte (mas para isso, se eu bem conheço o Brasil, ligeirinho se inventaria uma esdrúxula antecipação de tutela...), dizem, por fim, que ela é desumana. De fato, somos um país humaníssimo! Não sei como a ONU ainda não nos adotou como modelo de humanidade para o mundo... Mas, quando a polícia mata atrás do camburão – sem direito à defesa, que dirá ao devido processo legal -, quando a polícia invade um Carandiru e mata 111 e outras ações de “assepsia social”, a maior parte da população, consultada pelos jornais, acredita que são ações corretas do Estado contra a criminalidade. Em suma, somos contra a pena de morte norte-americana, com essa estranha mania de deixar o acusado se defender, mas somos favoráveis a essa pena de morte liminar, administrativa, auto-executável pelo policial. Camburão da morte, tudo bem, mas corredor da morte, isso de fato é desumano.
IV. No Brasil não se pode combater à criminalidade porque existem muitos recursos e muitas formas de prescrição! Se for poder botar o “meliante” na prisão do que se fala, em que os recursos atrapalham? Quarenta e quatro por cento das pessoas presas neste país preventivo estão nessa condição em prisão cautelar, ou seja: apesar dos recursos, apesar da falta de julgamento definitivo, apesar dos advogados, dos direitos humanos e da pilhéria probatória das acusações à brasileira, estão presos e lá ficarão por muito e muito tempo. Ah, você estava falando dos réus ricos? Então tudo bem, aí os recursos atrapalham a prisão mesmo. Mas os recursos não são a causa, são só o sintoma: é que as investigações policiais no Brasil, como regra, são patéticas e recheadas de abusos e ilegalidades. A polícia verde-amarela, com as exceções de praxe, costuma se dividir entre a preguiça administrativa e o voluntarismo criminoso a la Capitão Nascimento. Com uma investigação assim conduzida (e dá-lhe escutas ilegais, flagrantes cinematográficos, truculência e relatórios pífios...), não é difícil a um sujeito portando um bom advogado (que pode ser: a. um sujeito competente e garantista; b. um sujeito bem relacionado, a quem se retira da fila do protocolo para tomar cafezinho com quem decide), emplacar um recurso. Simples assim.
Quanto às prescrições? Só impedem a prisão penal, na prática, em dois casos: para crimes de bagatela, cuja prisão seria ridícula mesmo, ou para os que conseguem alongar os processos indefinidamente: os ricos. Diz uma anedota que um mal advogado pode fazer com que um processo se arraste por anos, enquanto um excelente advogado o arrastaria por décadas. Mas, pode anotar aí, se for mudado algo na prescrição, será para acabar com a folga dos primeiros e nunca com o direito dos segundos (isso mesmo: o que é folga para uns é visto como direito para os outros... discorda? Então vá ler jurisprudência, jornais, ou até gibis, e lembre-se de que este mês de maio de 2010 é um mês muito especial: pela primeira vez na sua história secular o STF condenou definitivamente um deputado! - e ainda dizem que a justiça é lenta e não pega ricos...).
As contradições poderiam se alongar ao infinito.
Essa hipocrisia atávica aqui reinante já foi atribuída à nossa herança latina. O historiador Carlos Fuentes lembra que enquanto na América colonizada pelos ingleses era tudo preto no branco, na América luso-hispânica era tudo no cinza. Os cowboys do velho oeste matavam índios, enforcavam bruxas e se achavam o máximo por isso. Os puritanos anglo-saxões podiam ser bandidos, mas não eram hipócritas. Matavam a cobra e exibiam o pau: “Matamos esses selvagens; enforcamos esses negros; cumprimos nosso dever”. Já nas terras latinas, matamos tantos índios quanto, surramos e assassinamos escravos negros aos milhares, mas, - que grande ajuda! - sempre tivemos muito remorso por termos feito essas coisas. A Igreja, o trono espanhol e o português tinham dúvidas sobre o que fazer com os “selvagens” (muitos os defendiam), o que fazer com os escravos e suas religiões (quem sabe liberá-los). Na prática, dizimamos nossos índios e fomos um dos últimos países do mundo a libertar os escravos e – ah, como é típico de nós – o primeiro a se autoproclamar uma democracia racial e a dizer que não tínhamos qualquer tipo de preconceito!
Nos pés uma chuteira, na cabeça uma máxima de almanaque, na boca uma frase cristã e nas mãos alguma sacanagem: esse é o braileiro típico.
Ah, claro, isso não se refere a mim e a você. O problema são os outros e só eles. sempre.
Sandro Sell
Concordo em absoluto, professor!
ResponderExcluirCláudia Trevisol
Quando eu crescer quero ser igual a você! =D
ResponderExcluirTinha lido no seu outro blog já. De qualquer forma, esse texto resume muita coisa que eu penso, sempre quis falar, mas nunca consegui organizar em texto assim.
ResponderExcluirParabéns, professor. Mais um belo artigo!
Abraço
Parabêns Professor!
ResponderExcluirUm belíssimo artigo!
Como sempre com uma visão realista da sociedade que vivemos!
Debora Rieth
Se todos tivessem um professor como esse de quanta besteira seríamos poupados! Mais professor Sandro já!
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