Ao considerarmos como natural, normal e indiscutível a distância existente entre as normas e os fatos (o que se diz e o que se faz em direitos humanos), acabamos consolidando e fortalecendo uma forma de entender a realidade que interessa somente àqueles detentores do poder econômico e, por sua vez, prejudica (porque acaba se mantendo como está) os setores desfavorecidos e excluídos da sociedade.
Eis o reclamo de David Sánchez Rubio: en definitiva, parece como si existiera una cultura de impotencia y excesivamente conformista que, bajo la excusa de ese abismo entre lo dicho y lo hecho, adopta la actitud de seguir dejando las cosas tal como están. A lo mejor es que esta separación que damos como natural y indiscutible, sea una de las razones que justifican la indolencia y la pasividade a la hora de construir día a día y en todos los lugares sociales, derechos humanos[1].
Cumpre destacar a importância de uma consciência crítica acerca da atual conjuntura dos direitos humanos para possibilitar a abertura de caminhos à expressão das insatisfações sociais. A conscientização nos possibilita a inserção no processo histórico e permite a inscrição na busca da afirmação desses direitos em prol da humanidade sofrida.
É preciso possibilitar um diálogo crítico e emancipador em prol de um movimento social de libertação da classe social que se encontra alijada do poder econômico (multidão oprimida). A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação do seres humanos, também não se transforma por acaso! A inefetividade dos direitos humanos (como realidade) não existe por acaso e é produto de nossas ações, por isso mesmo transformar essa realidade é tarefa nossa, de todos e todas[2]. É a prática (ação e reflexão) que implica a ação dos seres humanos sobre o mundo para transformá-lo[3].
É necessária uma consciência crítica que contextualize a concepção tradicional e hegemônica dos direitos humanos (aquela que nos afirma que temos idênticos direitos em razão do seu caráter universal) e exponha a enorme divergência existente entre o discurso e a prática. Afinal, destaca o professor Antonio Carlos Wolkmer, “enquanto a ideia de consciência e de razão na teoria tradicional está vinculada ao mundo da natureza e ao presente em contemplação, a teoria crítica expressa a ideia de razão vinculada ao processo histórico-social e à superação de uma realidade em constante transformação”[4].
Ora, por que os direitos humanos previstos em Tratados, Convenções Internacionais e na Constituição do Brasil não são aplicados? Qual a razão do abismo entre as normas e os fatos? De que resulta a inefetividade das normas que estabelecem a garantia de uma vida digna? Será pela circunstância de que, como afirma Eduardo Galeano[5], no mundo de hoje as palavras e os fatos raramente se encontram e, quando se encontram, como não se conhecem, não se cumprimentam! De fato, afirma Frei Betto, “ninguém escolhe a pobreza, ela decorre de leis e estruturas injustas. Isso é o que precisa mudar”[6]. Não devemos nos conformar com a resignação apregoada pelos conformistas, que afirmam e explicam com suas teorias que a “realidade é assim mesmo e nada podemos fazer contra ela”, uma vez que o sacrifício amargado (distância existente entre as normas e os fatos) não é o deles, nem o de suas famílias. Devemos acreditar, sim!, ao lado de Ernesto Sabato, na necessidade de resistir, acreditar que homens e mulheres encontram nas próprias crises a força para sua superação e que “as possibilidades de uma vida mais humana estão ao alcance de nossas mãos”[7].
O repúdio ao conformismo é igualmente manifestado por Che Guevara: jamais se esqueçam de que por trás de cada técnica há alguém que a empunha e que esse alguém é uma sociedade e que se está a favor ou contra essa sociedade. Que no mundo há os que pensam que a exploração é boa e os que pensam que a exploração é ruim e que é preciso acabar com ela. E que mesmo quando não se fala de política em nenhum lugar, o homem político não pode renunciar a essa situação imanente à sua condição de ser humano. E que a técnica é uma arma e que quem sinta que o mundo não é tão perfeito quanto deveria ser deve lutar para que a arma da técnica seja posta a serviço da sociedade, e antes, por isso, resgatar a sociedade, para que toda a técnica sirva à maior quantidade possível de seres humanos[8].
A realidade não é uma lei eterna! Registram Marx e Engels que “tudo que era sólido e estável evapora-se, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são, finalmente, obrigados a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas”[9]. A urgente transformação das estruturas sociais só será possível com a capacidade de luta da multidão oprimida em busca da afirmação da subjetividade coletiva e da eliminação das relações desiguais de poder material no momento de acesso aos bens indispensáveis para uma vida digna. O reconhecimento (fático e jurídico) da universalidade dos direitos humanos deve ser entendido sob um enfoque emancipador e libertador para que se possa empoderar novas subjetividades em busca de reconhecimento e poder no seio da sociedade e das instituições. Assim, ao se apresentarem como postulados generalizáveis a toda humanidade, “os direitos humanos têm sido o campo de batalha onde os interesses de poder se enfrentam para institucionalizar universalmente seus pontes de vista, os meios e os fins a conseguir”[10]. Não podemos esquecer que em nome dos direitos humanos (e da sua universalidade) foram cometidos os maiores horrores e construídos os ideais mais generosos (a chamada inversão ideológica), justificando-se a conquista e a eliminação de povos inteiros.
É, destarte, a partir do contexto presente, existencial e concreto e refletindo em conjunto com as aspirações da classe socialmente oprimida e excluída que construiremos uma nova ação política, sempre tendo presente, como adverte Paulo Freire, que “nosso papel não é falar ao povo sobre nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa”[11]. Não existe nada eterno, nada fixo, nada absoluto!
Não existem as propagadas leis inflexíveis que determinam a transformação inevitável do mundo, uma vez que a história humana se distingue da história natural por termos feito a primeira e não a segunda e, deveras: uma nova mentira nos é vendida como história. A mentira da derrota da esperança, a mentira da derrota da dignidade, a mentira da derrota da humanidade. O poder nos oferece um equilíbrio para a balança: a mentira da vitória do cinismo, a mentira da vitória do servilismo, a mentira da vitória do neoliberalismo. Em vez de humanidade nos oferecem índices das bolsas de valores, em vez de dignidade nos oferecem globalização da miséria, em vez de esperança nos oferecem o vácuo, em vez de via nos oferecem a internacional do terror[12].
Nesse sentido, afirma Michael Löwy que “tudo o que existe na vida humana e social está em perpétua transformação, tudo é perecível, tudo está sujeito ao fluxo da história”[13]. Não existem princípios eternos, nem verdades absolutas, todas as teorias, doutrinas e interpretações de realidade têm de ser vistas na sua história. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática[14]; uma consciência crítica que se traduza em ação e prática revolucionária, na qual irão se transformar o contexto, as condições sociais, as estruturas, o Estado, a sociedade, a economia e os próprios indivíduos (autores da ação). A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência! E, na medida em que lutamos para transformar a realidade “é que a entendemos melhor e é na medida em que melhor entendemos que mais lutamos para transformá-la”[15]. Eis o clamor manifestado por Edward Said: hay cierto peligro de que la fascinación ante lo que es difícil – siendo la crítica una de las formas de la dificultad – pueda apartar la alegría de nuestro corazón. Pero tenemos todo tipo de razones para suponer que el crítico que está cansado de la gerencia y de la batalla cotidiana es (...) bastante capaz al menos de encontrar el depósito en que se encuentran, arrancar el cerrojo y liberar las energías negativas. Normalmente, sin embargo, el crítico no puede sino mantener, sin siquiera expresarla del todo, la esperanza[16].
Por: Prof. Ruben Rockenbach
[1] “em definitivo, parece como se existisse uma cultura de impotência e excessivamente conformista que, baixo a escusa desse abismo entre o dito e o fato, adota a atitude de seguir deixando as coisas tal como estão. Ou melhor, é que esta separação que damos como natural e indiscutível, seja uma das razões que justificam a indolência e a passividade na hora de construir dia a dia e em todos os lugares sociais, direitos humanos”. (tradução livre). SÁNCHEZ RUBIO, David. Repensar derechos humanos: de la anestesia a la sinestesia. Sevilha: Editorial MAD, 2007, p. 12.
[2] Neste sentido: MANENTE, Ruben Rockenbach. Mais do mesmo: a questão ambiental. Em: Jornal da Praia – Garopaba, Edição número 97, de 1º a 15 de maio de 2008, p. 15.
[3] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 89.
[4] WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 07.
[5] GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. São Paulo: LP&M, 2005, p. 126.
[6] BETTO, Frei. A mosca azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p. 128.
[7] SABATO, Ernesto. A resistência. Tradução de Sérgio Molina. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 13.
[8] LÖWY, Michael. O pensamento de Che Guevara. São Paulo: Expressão Popular, 2003, 143.
[9] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Global, 2006, p. 88.
[10] HERRERA FLORES, Joaquín. O nome do riso: breve tratado sobre a arte e a dignidade. Tradução de Nilo Kaway Junior. Porto Alegre: Movimento; Florianópolis: CESUSC; Florianópolis: Bernúcia, 2007, p. 104.
[11] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 100.
[12] MARCOS, Subcomandante Insurgente. Convocação da Conferência Intercontinental contra o Neoliberalismo e pela Humanidade. Em: LÖWY, Michael (Org.). O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. Tradução de Cláudia Schilling e Luís Carlos Borges. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 554.
[13] LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 2006, p. 14.
[14] Neste sentido: FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 39.
[15] LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 2006, p. 29.
[16] “há certo perigo de que a fascinação ante o que é difícil – sendo a crítica uma das formas da dificuldade – possa apartar a alegria de nosso coração. Mas temos todo tipo de razões para supor que o crítico está cansado da gerência e da batalha cotidiana é (...) bastante capaz ao menos de encontrar o depósito em que se encontram, arrancar o ferrolho e liberar as energias negativas. Normalmente, contudo, o crítico não pode senão manter, sem sequer expressá-la do todo, a esperança”. (tradução livre). SAID, Edward. El mundo, el texto y el crítico. Tradução de Ricardo García Pérez. Barcelona: Debate, 2004, p. 47.
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