Autor: Juarez Cirino dos Santos (Professor da Universidade Federal do Paraná).
Resenhista: Sandro Sell (Professor de Direito Penal da UNIVALI e CESUSC).
De modo geral, os chamados “manuais de Direito penal” sofrem no Brasil de um duplo problema: permanecem isolados dos avanços teóricos produzidos no estrangeiro nas últimas décadas e situam-se teimosamente apartados das modificações garantistas trazidas pela Constituição de 1988. Folheando suas repetidas edições, não é difícil perceber que, se há modificações, essas se referem apenas ao acréscimo de comentários acerca de uma ou outra mudança em leis específicas, aprisionando as alterações legislativas em antigos referenciais teóricos, de forma que, passado o entusiasmo inicial, tem lugar o resignado consenso doutrinário de que tais alterações pouco fizeram além de validar as interpretações já realizadas nas edições anteriores à mudança. Nenhuma surpresa: com o horizonte de compreensão fixo no passado, toda novidade no front não tarda a se entrincheirar nas posições já consolidadas, e novas medalhas são concedidas aos generais que se negam a avançar.
Trata-se, nesses manuais, de um Direito penal feito com referência quase que exclusiva às primeiras interpretações que se seguiram à entrada em vigência do atual Código Penal (e lá se vão 70 anos!) e que, na dúvida, tenta resolver polêmicas relevantes com apelos à autoridade de velhos caudilhos: “No irretorquível magistério do saudoso Nelson Hungria”/ “Questão já fulminada por Aníbal Bruno” - e outras expressões que envergonham a dignidade histórica dos citados autores e mostra a estreiteza de raciocínio acadêmico dos que deles assim se utilizam. Respeitar a tradição é também não fazer referência a seus autores para fora do horizonte onde gestaram suas conclusões. Trazer Maggiori ou Hungria para definir em nossos tempos o significado de “comportamento lascivo” (como se tem feito) é agir de forma indecente em face desses homens que se destacaram justamente pela capacidade de refletirem o seu tempo, e que não merecem se tornarem caricatos por não terem, por óbvio, antecipado o nosso.
Uso anacrônico do passado e pouca leitura dos pares estrangeiros contemporâneos. Na falta de conhecimento da doutrina feita hoje para além do Brasil, chega-se a atribuir certas classificações de crimes (como variações inócuas dos crimes formais) à originalidade de autores locais!, a confundir-se o discurso dos tribunais (ato de força política) com o discurso da ciência do Direito, no pior estilo: “Sobre o equívoco dessa interpretação, já decidiu o Colendo Tribunal...”, ou: “É remansosa a jurisprudência no sentido de que é essa a interpretação correta”. Frases que revelam uma total confusão entre o fazer cotidiano dos operadores do Direito (que precisam, por motivos pragmáticos, convencer ao gosto do órgão decisório) com o fazer da doutrina do Direito que deve convencer pela lógica, razoabilidade interpretativa e adequabilidade empírica e axiológica de seu raciocínio. Se uma ciência do Direito é mesmo possível, ela não poderá validar o “acerto” de qualquer conclusão por estar baseada na força institucional dessa ou daquela pessoa, desse ou daquele órgão julgador.
Essa é a tradição dos autores cujos manuais ainda chamam o Código Penal de “estatuto repressivo” e não, em sintonia com a Constituição vigente, de algo como “estatuto protetivo”: limitador da sanha punitiva do Estado, óbice ao Estado de polícia, enquanto modelo cujos defensores concebem os direitos e garantias do cidadão como uma conspiração de intelectuais e ativistas de direitos humanos contra o extermínio da criminalidade daninha, analfabeta e pobre.
Estatuto protetivo? Ora, praticamente toda a parte geral do Código Penal (artigos 1 ao 120) é para explicitar, limitando, as regras da imputação criminal válida, e toda a parte especial (121 ao final) cumpre a dupla função de satisfazer à exigência da tipicidade prévia (a mais elementar garantia penal do cidadão) e a de determinar os limites máximos da pena. Mas quem lê o Código como “estatuto repressivo”, achará que a pena mínima é um dogma tão robusto quanto o limite imposto à pena máxima, e verá no Judiciário a continuação da polícia por outros meios.
E se essa tem sido a lição de muitos dos manuais disponíveis (dos mais utilizados manuais disponíveis), não há porque se admirar que nada roube a paz dos operadores jurídicos do cotidiano. A cara uniformemente pobre dos presos, o uso abusivo das prisões preventivas, as fundamentações de condenações baseadas em opiniões leigas e estereotipadas (“vida desregrada”, “personalidade voltada para o crime”, “mentalidade degenerada” e tantos outros arremedos de fundamentação), são tidas como compatíveis com as prescrições constitucionais. E os que ousam bradar contra tais abusos, para além do dia da formatura, são vistos como dotados de ingenuidade ou ligados aos interesses das organizações criminosas ou, ainda, surpreendentemente, chamados de “alternativos” ou “críticos”, indicando que o normal, o ortodoxo e o saudável é não levar os direitos e garantias muito a sério.
O livro “Direito Penal parte geral” do Professor Juarez Cirino dos Santos não compartilha dessas mazelas. Obra de quem conseguiu interpretar a dogmática nacional (respeitando suas normas e limites) à luz dos avanços da ciência penal internacional, em particular da alemã, mas com as necessárias aterrissagens numa criminologia enraizada nas contradições de uma sociedade repartida em classes. Sim, porque poucas instituições sociais refletem com tanto esmero a diferença radical entre o senhor e o escravo quanto o Direito penal. Se a sociedade é materialmente desigualitária, as penas distribuir-se-ão seguindo a mesma cartografia. Juarez Cirino sabe disso, enquanto a maior parte dos penalistas não sabe, ou alega que isso é assunto de Sociologia, Filosofia ou qualquer outra disciplina tida como irrelevante para a leitura do Código.
Com efeito, depois da queda do muro de Berlin, não foi apenas o socialismo que entrou em colapso, mas, sobretudo, a idéia de que há conflitos sociais de natureza estrutural. Desde esse evento, o mundo voltou a sentir-se em paz com as desigualdades e a atribuí-las a defeitos morais dos mais vulneráveis. A dialética da exclusão foi substituída por um modelo de matinê em que as forças iluminadas do universo (Forças de paz da ONU, OTAN, ONGS, BOPE, juízes-xerifes e Capitães Nascimento) poderão derrotar com bolsa-família e bolsa-cassetete o lado obscuro (preto e miserável) da força lamacenta que escorre dos morros. "Guerra nas estrelas" passou a ser o novo mito fundante de sociedades cujas elites largaram as cartilhas e foram ao cinema.
É difícil ser complexo num Direito que hoje é ensinado por resumos e de acordo com os editais do último concurso público. Por teimosia, o livro do Professor da UFPR insiste na complexidade. Então muitos o acharão difícil (como se houvesse jeito fácil de formar-se de maneira consistente em alguma coisa!). Compartilhar as dificuldades da área, apresentar o Direito penal na sua visão para adultos e não para fins de entretenimento e carreirismo, vai parecer à pedagogia dos berçários, que hoje infesta as universidades, antididático e pouco prático. Tudo que excede ao exame de ordem da OAB ou à prova do ENAD é, por reforma curricular, excessivo e desproporcional. Nesse sentido, a comentada obra é excessiva e, com suas 697 páginas mais capa dura, difícil de conciliar com o peso da lancheira.
Não que a obra em comento não permita estudar também para concursos, mas nesse mundo dominado por xizinhos e pela “melhor doutrina” é sempre um risco saber mais do que é pedido. Melhor é optar por aquele manual (muito citado por juízes e tribunais) que ensina o “princípio da consunção” dizendo que, nesse caso, “o peixinho maior come o peixinho menor” (espero que esse exemplo tenha aclarado à referência à lancheira acima).
Dos avanços penais estrangeiros, a obra trouxe (não como um tópico, mas como estrutura) as limitações ao poder de punir postos pelos autores que exigem não apenas dolo, conduta típica, causalidade e resultado para imputar um crime a alguém, - ou apenas conduta imprudente e dano efetivo para punir a título de culpa. Conduta e resultado passam a ser vistos como mediados não apenas pela causalidade física, condição necessária, mas não suficiente da imputação. Para além da causalidade física, exige-se também a ligação indispensável entre o risco, dolosa ou culposamente criado pela conduta do agente, e sua materialização significativa no resultado; não como justaposição temporal, mas como condição indispensável e controlável da eclosão do resultado repudiado pelo direito.
Assim, não basta constatar que o motorista, que trafegava em regular velocidade, estava embriagado ao atropelar o pedestre para dizê-lo autor de um crime de homicídio ou lesões corporais: é preciso verificar se o estar embriagado (o risco proibido assumido) efetivamente foi relevante para o resultado, já que um pedestre desatento pode atravessar a rua tão inesperadamente que o fato de estar o motorista sóbrio ou embriagado não faria qualquer diferença prática. Em outras palavras, não basta que haja motorista embriagado, direção e atropelamento: é preciso (para imputar tal atropelamento ao autor) que a embriaguez tenha sido efetivamente relevante para aquele resultado específico, que seja a conduta proibida (dirigir embriagado) que causou o resultado e não que, por simples coincidência, o resultado tenha se produzido por um agente alcoolizado.
A repartição do dolo direto em dolo de primeiro e de segundo grau, ausente em muitos manuais pátrios, ganha também o devido espaço na obra sob análise. Essa distinção é fundamental, pois nem sempre o agente “quer” o resultado criminoso que está disposto a produzir (dolo direto de primeiro grau), e nem por isso estará agindo por dolo eventual ou culpa. Por vezes, o agente não desejaria que uma lesão colateral acontecesse (ele não a quer em si), mas a aceita como um senão necessário para conseguir seu intento criminoso final e desejado; então, não se trata de assumir o risco de produzir o efeito colateral, ele o tem como certo, logo não se trata de dolo eventual.
Assim, se um desequilibrado automobilista, que acabou de ter seu retrovisor quebrado pelo motociclista, resolve colocar seu carro sobre este, querendo matá-lo, apesar de lamentar que para isso será necessário atingir também o inocente caroneiro da moto, como ficam os dolos? Ora, em relação ao motoqueiro que o automobilista quer matar será dolo direto de primeiro grau (da forma exata como está representado no artigo 18, I, primeira parte do Código Penal); já em relação ao carona não pode ser isso, pois ele não “quer” tal morte, até lamenta ter que produzi-la, mas nem por isso detém sua ação. Seria dolo eventual, então? Não, pois é tão certo que atingirá o condutor quanto seu passageiro: não está assumindo risco, mas aceitando um resultado dado como certo. Esse seria o chamado dolo direto de segundo grau: derivado não de um “querer o resultado”, mas de um não se opor a sua realização se tal for necessária para prosseguir na obra criminosa complexa.
Pura classificação cerebrina (como diziam os antigos)? Não, pois se considerássemos que um dos crimes (o contra o carona) não proveio de dolo direto, mas sim de dolo eventual (já que não houve o “querer o resultado” exigido pelo Código), parte significativa da doutrina (inspirada em Heleno Fragoso) diria que, em relação às penas, tratar-se-ia de um caso de concurso formal benéfico: as penas não seriam somadas (Caput do artigo 70 do CP, primeira parte): uma só ação resultando em dois ou mais crimes só implicariam a soma das penas se houvesse dolo direto em relação a cada um deles – interpretação corrente da segunda parte do caput do mesmo artigo .
A “gambiarra”, para aplicar a pena adequada ao caso (somá-las, pois) seria dizer que o autor quis ambos os resultados de forma autônoma. Mas isso é falso em relação à morte do carona, que não foi querida de forma autônoma, tanto quanto não foi um mero risco eventualmente assumido. Agora, pela teoria do dolo direto de primeiro e segundo graus, seria um caso de soma de penas, pois o “querer” deixa de ser condição necessária à manifestação do dolo direto, que passa a poder consistir também num aceitar produzir a lesão certa, embora não querida, como meio necessário ao empreendimento criminoso final.
Isso ilustra que a obra do Professor Cirino não é contra possibilidades legítimas e consistentes de fazer o autor do ilícito de receber a devida punição estatal – ainda que outras leituras mais favoráveis ao réu estejam disponíveis. Ao contrário, a obra questiona é a incriminação não sustentável por argumentos jurídicos adequados. Talvez por isso, o autor também exija maiores explicações dos prestigiados parceiros de escrita crítica e ciminologicamente fundamentada, Nilo batista e Eugênio Raul Zaffaroni, pela a assunção por parte deles de uma teoria “agnóstica” da pena. Para Cirino, negar-se a discutir as funções da pena (como implica o ser agnóstico em relação às mesmas) é deixar de lado uma importante trincheira para o combate ao desarrazoamento carcerário vigente mundo afora e, em particular, na América Latina – uma posição estranha à trajetória desses dois autores e sua implacável defesa contra o abastardamento da condição humana sob as grades.
Das suas obras anteriores, como “Criminologia Radical”, Cirino mantém a idéia de que, numa sociedade dividida em classes, o Direito penal não pode pretender pacificar a sociedade, fazer a justiça, “dar a cada um o que é seu”, como sonha a ética dos discursos de formatura. Não, nada de lógica de faroeste americano, pois o Direito penal não persegue criminosos, mas evidencia criminalizados, ou seja: assim como o crime é uma invenção do legislador (nulum crimen sine lege), o criminoso com direito ao cárcere e trânsito em julgado é uma invenção seletiva e ideológica do sistema social no qual o Direito se insere. As condutas mais toscas e as mais daninhas – o delito de varejo das periferias – é o grande alvo do sistema. Enquanto os delitos associados às classes dominantes ficam relegados a outros sistemas de controle social mais rarefeitos, na forma como dizem os políticos mais rapaces: “Eu já fui julgado pelas urnas e absolvido, então o que quer o Tribunal senão me perseguir?”.
Em suma: trata-se da obra que ousou colocar os alunos de graduação a par da mais prestigiada dogmática estrangeira e dos mais significativos avanços criminológicos do nosso tempo para, a partir de outra fonte de luz, reler as instituições penais brasileiras, há muito amareladas por penalistas que confundem autores antigos com autores clássicos, terminologia arcaica com vocabulário técnico, criminosos com criminalizados e por aí vai.
Isso faz do livro do Professor Juarez Cirino dos Santos uma obra muito diferente dos demais lançamentos na área. E quem não encontrar valor nessa diferença é porque há muito já vinha confundindo a última jurisprudência do tribunal com os avanços na doutrina criminal – mas para esses não há conserto, apenas apostilas.
è difícil esse livro, mas depois de lê-lo não dá para aceitar os tradicionais.
ResponderExcluirBruna Ventura
Confesso que não conheço este livro, mas vou lê-lo... para você falar dele com tamanha ênfase deve de fato valer a pena.
ResponderExcluirAbraço (e vamos marcar sua vinda aqui na UNIP).
Poxa, vale a pena adquiri-lo...
ResponderExcluirCansei tanto das receitas de bolo quanto de seus leitores, que, carinhosamente, digo que cheiram vademecum :D
Bjão :*
Comprei esse livro, agora spo falta coragem poara enfrentá-lo. Mas valeu o incentivo, Professor! Márcio Roberto Campos
ResponderExcluirO exemplo dos peixinhos é do Capez, nosso nobre depultado! Conservador é elogio, esse sujeito deveria estar no index...
ResponderExcluirSuzana Flet
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ResponderExcluirExcelente post. Uma amostra do pensamento cristalino e original do professor Cirino, expoente destacado da Criminologia Radical.
ResponderExcluirAlguém que possui a coragem de nadar contra a corrente, evidenciando os efeitos danosos de um sistema penal que apenas repete os desequilíbrios de nosso País desigual.
Precisamos de mais Estado e de menos prisão.
Um abraço,
Edilson Cordeiro
Concordo com você, Sandro. Mas acho que o Cirino às vezes força um pouco na psicanálise. Mas, melhor assim, do que os demais que forçam em puro senso comum.
ResponderExcluirAbraço,
Paulo Márcio
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ResponderExcluirNão fui nas palestras mas pelo que se ouve, foi show. Parabéns a todos.
ResponderExcluirMarcos Duald
A opinião de professores e de profissionais do Direito Penal do seu nível intelectual é extremamente valiosa e estimulante. Muito obrigado por tudo. Vamos continuar nos comunicando.
ResponderExcluirReceba o meu abraço afetuoso,
Juarez Cirino dos Santos.