domingo, 23 de maio de 2010

Long Play

LADO A
Cada um de nós é um impulso de vida único e estridente. Não nos bastando em nossas existências, envolvemos quem está em nossa proximidade, que, identificando-se com nosso sopro de liberdade, promove a multiplicação inimaginável do caráter criativo do ser humano. Com vistas à sobrevivência e à superação humanas, quase não existe limitações – exceto a busca incessante do bem do ser humano.
Reproduzimos uma sinfonia de delírio febril, de democracia marginal, de "ais do amor que vêm da experiência comum da gente, surgidas nos momentos primordiais do cotidiano, na encruzilhada da fome e da hipocrisia (da ordem prepotente) com os elementos imaginativo mais ousados que incendeiam a liberdade em cada esquina (...)" (Warat, in A ciência jurídica e seus dois maridos).
Dançamos feliz e loucamente a nossa música, no presente, sentindo o clímax e o anticlímax de cada excitação harmônica, empreendendo experiência em cada situação. Até que, no mesmo palco, esbarramo-nos com uma outra pessoa que baila a mesma liberdade, mas de forma desconhecida, até estranha, e, por isso, ameaçadora – para o nosso parco entendimento de alteridade.
Não nos permitimos analisar seus interesses, pois já temos medo e ansiamos, novamente, por segurança: quero continuar a dançar e não permito que ninguém (nem mesmo na minha imaginação) possa cercear a minha vontade.

LADO B
Impusemos, portanto, regras para conter nossos espíritos. Modos que seriam os certos de tocar um instrumento, de cantar, de dançar o resultado. E finalizamos com a vedação de qualquer de forma modificativa do que fora estabelecido. Cantamos, então, em um coral simétrico e enfadonho, somente músicas de duas ou três notas. Dançamos sozinhos, olhando para um futuro que depende do destino ou para um passado do qual se choram as expectativas. O presente é proibido, também, pois proporciona a sensação de algo a construir e, por conseguinte, promove o questionamento do "e se eu fizer algo para mudar?". Não, isso não é permitido.
Castramo-nos em um sistema fechado e repetitivo, ausente de (permissão para) perguntas. Tem-se a resposta para tudo em todas as instituições: "a sociedade, os políticos e os sacerdotes de todos os tipos inimagináveis fecharam as portas que levam a você mesmo" (op. cit.).
Se não cantar como o regente do coral determina ou não dançar como o diretor manda, está fora: é produto marginal do sistema criado para conferir segurança às pessoas. A sentença é que, até o fim da vida, os "marginais" tentem se adequar para serem considerados participantes do grupo. Caso contrário, serão eternamente excluídos: a história não cantará em solo a sua música, nem os ventos sibilarão seus movimentos.
E a humanidade torna-se monocromática, porque um deus assim o quer, porque era para ser, porque ninguém viu que poderia assobiar em outro tom ou inventar um passo novo nos bastidores. "Todos" preferiram estar no palco e, para isso, tiveram que dançar conforme a música. Tornamo-nos ridiculamente iguais.
Até que transgressores marginais unam suas reivindicações de existência e virem o disco.

* Na imagem, foto da dança MONO. Para maiores informações: http://www.helenakatz.pro.br/midia/helenakatz21212076451.jpg

Texto da GRAZIELLY AB


Publicado por Sandro Sell

9 comentários:

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  2. Ahhh Grazy, o negócio mesmo é a carnavalização do desejo! risos! Contra a "óptica" do ver e a favor do sentido sentir o mundo através das nossas paixões!

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  3. Largados na vida sem manual, com toneladas de culpas e pacados nada originais como herança, com medo de fracassar (ainda que não se saiba o que é sucesso), com medo de desagradar (ainda que não se saiba a quem) e com medo de perder a cabeça (mesmo sem saber qual é seu lugar), cedemos à institucionalização. A velha idéia, aprendida desde a infância, de que os caminhos com maior fila devem levar ao lugar certo. Cedemos ao gosto dos outros pela dificuldade de saber qual é o nosso. "Porque o homem imediato não reconhece o seu eu, só se reconhece pelos trajes... reconhece que tem um eu só pelas aparências" (Kierkegaard). Como carnavalizar a vida - minha cara Leilane - se isso significa invertê-la e só se pode pôr algo de ponta a cabeça depois de já ter localizado onde ficam os pés (e onde eles deveria estar fincados!)... Não é à toa que as carnavalizações do desejo que usualmente intentamos geram a sensação de que continuamos fazendo o mesmo, só que com outros custos...

    Grazi: você e a sua poética ríspida como cacos de vidro e sensível como a pele da nuca, põe a gente num estado de semi-desespero e semi-encantamento. Você é desassossegante, guria!
    Abraço, Sandro

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  4. À essa carnavalização dos desejos, respondo novamente com Warat, que, defendendo a liberdade da castração, assevera que precisamos de limites em respeito a si e ao outro: "a perda de limites é a falta do pai e isso é mortal para a constituição de uma identidade autônoma" (falo isso muitos justificam atitudes inconequentes com o Warat, pois o analisam de forma parcial - assim como o crente que se funda na bíblia somente nos pontos que lhe é conveniente).

    Sou bem à favor de vermos o mundo conforme nossas "paixões", mas desde que passadas pelo crivo do "isso é realmente bom para mim"? Não digo no sentido efêmero fantasia de final de semana, mas sim quanto à própria evolução como ser humano. No mais, penso que não precisamos somente libertar "nossas paixões", mas sim saber interpretá-las.

    Há bem pouco tempo, eu era contra as instituições, mas, temporariamente (ainda não estudei mais sobre o assunto), E. Dussel me convenceu que elas se fazem necessárias à nossa sobrevivência.

    Penso, assim, que só precisamos equilibrar essa cristalização de formas de agir com o seu real sentido, que está vinculado ao que precisamos e que encontra razão em nosso bem viver. Então, saberemos a hora certa de ouvir uma música no Lado A ou uma no Lado B.

    Mas o nosso medo do "criar" e do "novo" não dá espaço ao Lado A. Mas isso está mudando nos bastidores :)

    Hahaha!
    Sandro, adorei seu comentário :)
    Eu quero mesmo é trazer um (bom) desassossego para provocar mudanças :D

    E se me permite, copiarei seu comentário para meu blog, hehe.

    Bjão :D

    Grazy

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  6. O medo e a culpa que nos foi imposta não pode tomar o lugar do coração. Se é verdade que também atribuímos à lei, ao direito, ao Estado o mesmo papel de cuidado atribuído a Deus, ao Pai, etc, e mesmo assim sentimo-nos vivendo em uma ilusão de segurança “sem saber onde estão localizados os pés”, só posso saber onde está localizado meu coração. Sem descobrir o que somos e o que nos tornamos, ceder ao niilismo é ceder totalmente ao desespero mudo. Mas também precisamos de voz, de um grito calmo e desestabilizador. Se não tenho fé em Deus, tenho fé na humanidade, na construção de uma humanidade de amor. Mantendo o espírito desarmado ao novo, ao ver e dar-se conta, mantendo as verdades sempre provisoriamente prontas a serem repensadas, o projeto utópico guia as ações diárias e vislumbra a paz em um mundo de guerra. Respeitar a si e ao outro só pode ser um ato de amor. Quanto a Dussel – Grazy, já to com saudades de fofocar contigo, risos – além da importância das instituições jurídicas, a importância do dar-se conta da exclusão, da luta pelo novo, por projetos utópicos a guiarem a ação prática rumo a maior democratização, a uma sociedade de amor, ou, nos termos dele.. baseada na ética da alteridade.

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  7. Direito, Lei, Pai, Warat, Freud, Dussel,Coração, Pés,Cabeça: instituições, mestres e partes do corpo. Umbigo e alteridade. Estado leviatã e estado de desespero. Amor, democracia e um pouco de culpa... tudo assim reunido daria um bolo, um sarau ou uma orgia. Mas pouco faria para quem, como eu, ando com os meus lados A e B confundindo-se, alternando-se sem me avisar, mas sempre me entregando a conta que eu insisto em não pagar. O sentido das coisas e da vida pode ser rolado como dívida pública, dado que cobra preços irreais e impagáveis.

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  8. Se eles são Exu, Eu sou Iemanjá, Se eles matam o bicho, Eu tomo banho de mar, Com o corpo fechado ninguém vai me pegar, Lado A lado B
    Lado B lado A...
    Texto tocante, dasassossegada Grazi :)))))))

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