sexta-feira, 30 de julho de 2010

Relativização da presunção de violência e dignidade da adolescente


Várias pessoas estão preocupadas com o fato de, em recente posição, o STJ ter relativizado a violência presumida do artigo 217-A do Código Penal, permitindo que os julgadores discutam a validade, no caso específico, do consentimento da menor de 14 anos em relação à conjunção carnal. Acreditam que se isso refletir uma tendência geral no Judiciário estar-se-á abrindo as portas ao reino da pedofilia e toda sorte de abusos contra crianças. Alegam ainda que tal relativização seria uma quebra da repartição de poderes, pois permitiria que o Judiciário mantivesse um entendimento, benéfico ao acusado, formado na interpretação da lei anterior, cuja base legislativa teria sido claramente fulminada na nova lei dos crimes contra a dignidade sexual (lei 12.015/2009).
      De nossa parte, achamos que flexibilizar a presunção de violência do Art. 217-A, tornando-a relativa e, assim, admitir que o acusado possa produzir prova em contrário, é legítima e juridicamente consistente sob qualquer aspecto de relevo.
     Dogmaticamente, porque no Direito penal contemporâneo não deve existir responsabilidade penal objetiva, logo as presunções absolutas em sede criminal, que nada mais são do que um resquício da superada versari in re ilicita, devem, sempre que possível, ser repudiadas pelos órgãos de interpretação legislativa. Não se pode mais conviver com a velha história de que quem obra mal em X deve ser responsabilizado por todos os Ys que por presunção a lei considerou a X associados. No conhecido exemplo, seria como impedir o condutor que dirige sem habilitação regular de provar que não foi culpado no acidente com vítimas, incriminando-o por pura presunção.
      Quando uma presunção é absoluta – jures et de jure - o que se está impedindo é justamente a investigação mais aprofundada da culpa subjetiva ligada a cada lesão de bem jurídico, pois só se presume o que não se permite provar. (E a ampla defesa? E o contraditório? E o direito penal da culpabilidade?). A lesão a um bem jurídico não deve ser diagnosticada por antecipação legal avessa aos fatos, mas demonstrada dentro de sua realidade e contexto social. Não admitir prova em contrário é calar um dos pólos da ação penal e obstar à apuração da verdade.
      Além disso, sob a égide de uma absoluta presunção de violência, como fica o direito da suposta vítima de 13 anos de narrar a sua versão, de avaliar o consentimento que manifestou no momento do ato? Por que ela é obrigada a engolir a versão, bem intencionada, mas possivelmente mal sintonizada à sua realidade, de seus pais ou do promotor de justiça?
      Tem que haver alguma diferença jurídica entre manter relações sexuais consentidas com uma menina de 13 anos em relação a dobrar-lhe a resistência com violência ou fraude explícita. E tem que haver tal diferença na aplicação da lei porque ela existe na prática, e um direito que fica de costas para a vida das pessoas, que não capta as sutilezas do cotidiano, é um direito tecido pelas redes de violência simbólica, que procura, sobretudo, controlar o que não compreende. Isso é muito real, sobretudo naqueles casos em que só existe uma “vítima” depois de os pais da menina terem descoberto – muitas vezes, meses depois - à iniciação precoce da garota que até então vivia feliz com seu namorado mais velho.
      Não deixa de ser irônico que nossos tribunais praticamente não apresentem casos envolvendo mulheres com mais de 18 anos que tiveram relações consentidas com meninos de menos de 14 anos. Será que vamos brincar que tal não existe?Ou tal não é contabilizado nas estatísticas criminais (vira cifra oculta) por sua tradicional adequação social? É difícil encontrar um garoto que, mesmo anos depois, não contasse tal iniciação como um prodígio de virilidade. Mas, se deixasse pela lei, o único status que ele receberia seria o de “estuprado”. Isso é preservar a dignidade do menino? Parece que não, e é por isso que se finge que tal situação não existe.
     Ora, se com meninos tem-se “relaxado” (pais, e órgãos acusadores) a vigilância, com as meninas, ao contrário, se clama crescente controle. O filho pode ser precoce, a menina só pode ser ingênua e violentada. O que se está dizendo com isso é que, como sempre, nenhuma hermenêutica é apenas uma relação solitária entre o intérprete racional e a lei, mas um processo eivado de intenções, concepções de mundo, distorções e, mesmo, preconceitos. Se na prática flexibilizou-se a presunção de violência quando o mais novo da relação é homem, por que se escandalizar com a mesma medida quando o arranjo de gêneros ocorreu no sentido inverso?
    Se não, a interpretação da presunção de violência passa a ser uma mera - mas não simples - questão de gênero. Enfatizamos: por que um menino pode significar positivamente sua relação em idade questionável – e, com apoio freqüente dos pais, sentir-se herói – e a menina, por mais consciente que tenha sido no seu consentimento, é obrigada a suportar o status de “estuprada”? Por quê? Porque a hipocrisia social, aliada a uma pedagogia que confunde pré-adolescência com ausência de qualquer discernimento, quer que ela carregue o ônus de vítima, pois é mais fácil para todos que não sabem o que fazer com a iniciação sexual antecipada de seus filhos apontarem um culpado que não esteja na própria família.
     Se agora, a nova denominação dos “crimes contra os costumes” passou a ser “crimes contra a dignidade sexual”, pergunta-se: a dignidade sexual de quem? Da mamãe e do papai que não cuidaram da filhinha? Ou da adolescente que pode informar adequadamente (pelo menos, na maioria dos casos) se foi ou não enganada, se foi ou não estuprada, se quer ser mesmo a “vítima” nessa história. Ora, o conceito de dignidade remonta a Imannuel Kant para quem a pessoa deve ser tratada sempre como um fim em si, e não como um meio, um objeto. Não querer sequer saber como a garota foi e se sentiu tratada, se se achou usada ou amada, é tratá-la como objeto. E não pode ser a lei, os pais ou o órgão de acusação, que devem, omitindo a vontade da presumida vítima, construir o sentido de tal evento. “Mãe, mas fui eu que pedi.” “Cala a boca, minha filha. Não seja estúpida, você foi estuprada”.
      Quanto ao argumento de que assim facilitaremos a vida dos pedófilos, ele incorre em dois problemas. Primeiro na completa descrença no Poder Judiciário, presumindo que este, uma vez relativizada à presunção, confundirá o abuso criminoso de um pedófilo com um romance consentido, ainda que prematuro, em que ninguém tratou com desrespeito ou se sentiu objeto de outrem. Segundo, punir aquele que talvez não merecesse para assim conter ou assustar os efetivamente criminosos é argumento para quem possui uma visão distorcida acerca da função do Direito nos Estados democráticos. Como ensinou Ronald Dworkin, violar direitos individuais para satisfazer interesses instrumentais ou exemplificativos do Estado é não levar os direitos a sério. E Eugênio R. Zaffaroni lembra que a lógica do punir para dissuadir terceiros só funciona nos estados de terror, com suas penas cruéis e indiscriminadas. Nos Estados de direito, a culpabilidade, e não o medo do que farão terceiros, é que legitima a pena.
       Portanto, quebrar presunções absolutas é apenas fazer o óbvio na administração da justiça criminal, analisar cada caso em seu contexto existencialmente carregado de significado. Há duas gerações, meninas de 13 anos casavam com o apoio dos pais. Eram tais pais partícipes de estupros? “Há, mas isso era no passado”. Mas será que a nova lei de fato sintonizou-se com o mundo dos adolescentes e pré-adolescentes de hoje? Ou apenas expressou a ânsia de que o Direito penal venha a suprir nossa educação deficiente e diminuir nossa perplexidade diante de um comportamento que nos assusta?
       Como a maioria das pessoas, temo o alastramento da pedofilia. Mas como pai, de meninas e meninos, e profissional do Direito, sustento que a vítima tem o direito de significar o que lhe ocorre, pelo menos em se tratando de fatos de natureza sexual, pois é a sua dignidade pessoal que está em jogo. Isso deve ser assim nas zonas de idade que se avizinham aos 14 anos. Afinal, se para a mulher adulta, se exige a inequívoca representação para autorizar o processo penal contra um efetivo e malvado estuprador, por saber que tal processo pode-lhe trazer mais malefícios do que justiça (streptus judicii’), por que, em nome da dignidade da menina de 13 anos, não deixar que ela conte sua versão? E se ela não se sentiu estuprada, os pais, promotores e juízes não têm o direito moral – na preservação do seu próprio conceito de bons costumes - de infligir-lhe tal insulto.

Sandro Cesar Sell

Bibliografia:

BASTOS, José C. Curso crítico de Direito penal. Florianópolis: Conceito, 2008.
DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1989.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2004.
ROXIN, Claus. Derecho penal – parte geral. Madrid: Thomson, 2006.
SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal – parte geral. Florianópolis: Conceito, 2010.
SELL, Sandro Cesar. Comportamento social e anti-social humano. Florianópolis, Ijuris, 2006.
ZAFFARONI, Eugênio R. Derecho penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 2004.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

1x0 para o TOURO!


 Após projeto de Iniciativa Legislativa Popular (ILP) o Parlamento de Barcelona(Espanha?) aprovou a proposta e a partir de 2012 as corridas de touros (touradas) estarão proibidas na região autônoma da Catalunha. Deixando de lado o debate cultural, é goooollll do touro! Acho que a medida deve ser comemorada com um grandioso churrasco, regado com muita costela, picanha e maminha (até porque o problema não é machucar/matar o animal, a questão é fazer isso sem que a gente veja: o que os olhos não vêem o coração não sente).

Postagem: Prof. Ruben Rockenbach

terça-feira, 27 de julho de 2010

Duas verdades inconvenientes...

Assistindo ao "Caso Bruno" e ao caso "Filho da Cissa Guimarães", duas coisas posso inferir:
Primeira: As celebridades também morrem;
Segunda: Nossa polícia-justiça quando quer mostrar-se eficiente (leia-se, em sintonia com os anseios da mídia) torna-se patética, opinativa, rasteira e histérica.

Começo a temer a "conspiração mídia-judiciário" que vai se formando ao arrepio das garantias constitucionais (mais ou menos no sentido: publica que eu prendo).
É paradoxal que essas duas intituições, pensadas para conter os abusos do Executivo em seu trono, numa tentativa infantil de se popularizarem a qualquer custo, caminhem para um sistema em que exceções e "clamor público" ditem as regras da liberdade. 

Sandro C. Sell

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Mas allá de Maradona

Jorge Luis Borges, o portenho imortal. 


Não és os Outros
                   Não há-de te salvar o que deixaram
Escrito aqueles que o teu medo implora;
             Não és os outros e encontras-te agora
No meio do labirinto que tramaram
                 Teus passos.
        Não te salva a agonia
De Jesus ou de Sócrates ou o forte
                                    Siddharta de ouro que aceitou a morte
Naquele jardim, ao declinar o dia.
               Também é pó cada palavra escrita
Por tua mão ou o verbo pronunciado
                        Pela boca. Não há pena no Fado
E a noite de Deus é infinita
                  Tua matéria é o tempo, o incessante
Tempo.      E és cada solitário instante.

Jorge Luis Borges, in "A Moeda de Ferro"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
A foto é de Paola Agosti
Sandro Sell

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O Riso, a pegadinha e o papai papudo!

O riso é algo que tem um componente de mistério. Por este motivo o riso foi considerado inimigo número um de toda a filosofia ocidental (aliás, Platão queria que a comédia fosse proibida). Somente Nietzsche (A Gaia Ciência) e Spinoza (Ética) se dedicaram ao riso. De fato, a risada – essa singela expressão visual e sonora – é capaz de “quebrar” protocolos, dogmas, teorias e até mesmo ridicularizar situações e pessoas (claro que repudiamos o riso sob este último aspecto). O riso é subversivo! E, embora o riso seja um simples ato, não sabemos ao certo o que nos motiva sorrir ou não de determinadas situações (Freud se dedicou a essa questão em “os chistes e a sua relação com o inconsciente”). Tanto mistério! Aliás, alguém sabe se a Monalisa de Leonardo da Vinci está rindo ou não? O fato é que hoje o riso ficou sem graça com a “perda” de Gilberto Fernandes, o “gibe” e o “papai papudo” (quem nunca riu com as câmeras escondidas dele!).  Fica a homenagem.
 
Por: Prof. Ruben Rockenbach

Cláusula Miranda

Você tem o direito de ficar calado!
 Em 1963, Ernesto Miranda foi preso em Phoenix, Arizona  por roubar 8 dólares de um bancário, e acusado de assalto à mão armada. Na delegacia, sem advogado, ele confessou não apenas esse crime, mas também um estupro que teria ocorrido 11 dias antes de sua prisão. Seus advogados, então, apelaram, sustentatando que ele não conhecia o direito de não ser obrigado a auto-incriminação.
Em 1966, o caso conhecido como Miranda vs. Arizona, chegou à Suprema Corte dos EUA,  sendo decidido que a não informação do preso sobre seus direitos constitucionais básicos de: presuncão de inocência,  permanecer em silêncio e de poder ter acesso a assistência de advogado, invalidam a prisão e a confissão do acusado.
Então, a fórmula dos filmes:
You have the right to remain silent. Anything you say can and will be used against you in a court of law. You have the right to speak to an attorney, and to have an attorney present during any questioning. If you cannot afford a lawyer, one will be provided for you at government expense.

No Brasil, os presos possuem os mesmos direitos constitucionais, só que como aqui somos mais alfabetizados do que  os norte-americanos, uma declaração equivalente só é encontrada - por escrito - nos termos do interrogatório policial.
Esse descaso com a informação de direitos no Brasil é lamentável.  Isso parece decorrer do fato de que aqui - no país da informalidade abusiva -  fórmulas dessa natureza são vistas pelas  autoridades como meras frescuras sem-sentido ou, quando muito, problemas alheios às suas funções.
É como se prestar informações sobre direitos fundamentais ao preso fosse um assunto de menor relevância, ou um produto privado, que deve ser comprado unicamente na banca do seu próprio advogado.

Você tem o dever de ficar calado!
“Quando alguém é detido, ao menos nos filmes, se lhe permite guardar silêncio, porque ‘qualquer coisa que diga poderá ser usada contra você´... Há nessa advertência um ânimo estranho –contraditório – de não querer jogar sujo de todo. É dizer, se informa ao réu que as regras vão ser sujas a partir de agora, se o informa ou lhe recorda que se irá contra ele de qualquer maneira possível e se aproveitarão das possíveis torpezas, incongruências e erros – não é já um suspeito, mas um acusado cuja culpa vai se tentar demonstrar, seus álibis serão ironizados, a imparcialidade já não lhe assiste, não entre hoje e o dia em que compareça em juízo, - todo esforço irá se encaminhar na obtenção de provas para sua condenação, toda vigilância, escuta e investigação se voltará para indícios que o incriminem e reforcem o acerto da decisão de tê-lo detido. E, no entanto, se lhe oferece a oportunidade de calar, quase se exige dele; em todo caso se o faz saber que esse direito seu, que quiçá ignorava, e que, portanto, se está nele despertando a salvadora idéia: de não abrir a boca, de não negar sequer o que se está lhe imputando, de não expor-se ao perigo de defender-se sozinho; calar se mostra ou lhe é apresentado como o mais prudente sob todas as luzes, e o que pode salvar-nos, ainda que saibamos que somos culpados, a única maneira de que esse jogo sujo anunciado fique sem efeito ou apenas possa se pôr em prática, ou ao menos não com a involuntária e ingênua colaboração do réu: `Você tem o direito de ficar calado`, o chamam de a Fórmula Miranda na América ... a mim me aplicaram uma vez ali, faz muito tempo ou não tanto, porém a polícia a recitou incompleta, imperfeitamente, se esqueceu de dizer “diante de um Tribunal”, ao dizer-me rapidamente a famosa frase... houve testemunhas de sua omissão e não foi válida minha detenção por essa razão. E ao mesmo estranho espírito responde esse outro direito do processado, o de não declarar contra si mesmo, a não prejudicar-se verbalmente com seu relato ou suas respostas ou contradições e balbuceos. A não se danar narrativamente e a mentir portanto.
O jogo é na realidade tão sujo e interessado que não há sistema judicial que se possa presumir de justo com premissas semelhantes, e quiçá não haja justiça possível nesse caso, jamais em nenhum lugar, a justiça uma fantasmagoria e um conceito falso. Porque o que se diz ao acusado vem a ser isto: `Se declaras algo que nos convenha ou seja favorável a nossos propósitos, acreditaremos em ti e o tomaremos em conta, e contra ti o usaremos. Se pelo contrário alegas algo em teu benefício ou defesa, algo para ti exculpatório e para nós inconveniente, não acreditaremos em nada e serão palavras ao vento, dado que o direito de mentir te assiste e damos por presumido que a ele recorre todo mundo, quer dizer, todos os criminosos. Se te escapa uma afirmação que te inculpe, ou tropeças em contradição flagrante, ou se confessas abertamente, essas palavras terão seu peso e obrarão contra ti: as ouviremos, as registraremos, tomaremos nota, as daremos por pronunciadas, serão permanentes, as incorporaremos e serão tua responsabilidade. Qualquer frase que ajude a exonerar tua culpa, ao contrário, será passageira e descartada, faremos ouvidos surdos e caso omisso, não contará, será ar, vapor, fumaça, e em teu favor não pesarão. Se te declaras culpado, o julgaremos certo e o tomaremos a sério; se inocente, tão só como uma piada nos registros... Se dá assim por presunção de que tanto o inocente quanto o culpado se declararão o primeiro, logo a sua fala não fará distinção entre eles, mas os manterão igualados, nivelados. E é então que se acrescenta: “Podes guardar silêncio”, ainda que tampouco isso vá distinguir o inocente do culpado. (Calar, calar, a grande aspiração a que ninguém cumpre nem depois de morto, e, no entanto, é o conselho que nos é dado nos momentos mais graves: ´Cala, cala e não digas nada, nem sequer para salvar-te. Guarda a língua, esconde-a, engole-a, ainda que te afogue, como se a houvesse comido o gato. Cala e assim te salva.´.)"
Javier Marías – Tu rostro mañana

Tradução e postagem: Prof. Sandro Sell

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Beethoven e Felipe Melo: para Elisa (em verdade, Eliza)

Embora eu não seja um torcedor da seleção brasileira de futebol (se bem que nesta copa teria sido melhor torcer pelo Brasil do que para a Argentina) lamentei – e hoje lamento ainda mais! – a desclassificação do time na Copa do Mundo. Explico: passado o “caso” Isabela Nardoni a imprensa sensacionalista nacional estava em busca da identificação de novos inimigos (o velho fenômeno da culpabilização) e, sobretudo, de novos condenados. Assim, com a saída do Brasil da copa as pautas jornalísticas já retomaram sua principal característica: narrar o mundo a partir da violência (é como se todas as experiências diárias fossem violentas em todas as partes do mundo o que, de fato, nos gera um temor e um medo do inimigo inventado – veja-se para tanto o documentário de Michael Moore “tiros em columbine”). Agora, a “bola da vez” é o “caso” Eliza Samudio (onde entre os possíveis suspeitos figura o goleiro do Flamengo Bruno). E, dá-lhe, tragédia! Já descobriram, inclusive, que o pai da Eliza (aquele que está com a guarda judicial da criança filha da vítima) responde a processo por ter estuprado sua sobrinha. Quem se deu bem: Felipe Melo. Sim, o volante da seleção brasileira que foi apontado como culpado da eliminação no jogo contra a Holanda (seu processo de culpabilização foi interrompido). Que saudades dos tempos em que Elisa (neste caso Eliza) aparecia como aquela composição de Beethoven. Claro que o objetivo da postagem não é entrar no mérito dos casos e, tampouco, discutir o sistema de punição. Sem dúvida os fatos são chocantes e cruéis! O que não gosto é o papel da mídia. Mas, agora paro de escrever porque está começando a cobertura especial do “caso” Eliza no programa da Sonia Abraão na RedeTv.

Por: Ruben Rockenbach

sábado, 3 de julho de 2010

Espelho e reconhecimento

A frase "ser é ser percebido" pode ser tomada também, para longe de seu contexto original (e do post anterior), como um imperativo ético contra a indiferença. A tal da ética do reconhecimento de que fala Charles Taylor e o Thiago Fabres: o olhar do outro nos constrói, nos melhora, nos deturpa ou nos destrói. E, por contraposição, a ausência de reconhecimento alheio, nos torna vazios, solitários e vegetativos.
O que é nossa identidade pessoal senão uma constante negociação entre uma vacilante auto-intuição e aquilo que os outros vêem em nós?
O olhar dos senhores coisificava os escravos, o olhar da tradição estupidificava as mulheres, o olhar dos padres originava o pecado, assim como o olhar do amante faz surgir à beleza inigualável da amada. O "eu" se forma e se deforma na fricção com o "eles".
Em Psicologia social, chama-se esse dom, de construção do sujeito pelos seus expectadores referenciais, de efeito Pigmalião- referindo-se ao mito do escultor que amou uma estátua como se fosse pessoa e, assim, conseguiu torná-la gente (quem se lembra do filme My fair lady, recorda como a personagem de Audrey Hepburn passa de uma florista vulgar a uma nobre dama, simplesmente porque seu “amigos” conseguiram fazer com que ela fosse vista dessa segunda maneira – o nome da obra que deu origem ao filme era mesmo “Pigmalião”, de Bernard Shaw).
Nossa existência significativa, para nós e para o mundo, vai surgindo como resultado daquilo que Charles Cooley chamava de nosso reflexo no espelho social. Sabemos que existimos e que somos assim e não assado na medida e na maneira em que somos refletidos no olhar do outro. Jacquard diz:
“Minha capacidade para pensar e dizer “eu” não me foi fornecida pelo meu patrimônio genético; o que esse me deu era necessário, mas não suficiente. Só consegui dizer “eu”, graças ao “tu” que ouvi. A pessoa que sou não é o resultado de um processo interno solitário; só pôde construir-se encontrando-se no foco dos olhares dos outros. Não só essa pessoa é alimentada com todas as contribuições dos que me rodeiam, mas sua realidade essencial é construída pelas trocas com eles; eu sou os vínculos que vou tecendo com os outros.”
Se é o olhar que gera o mundo e seus seres, com maior razão ainda é ele que coloca os adjetivos nas coisas já percebidas. O olhar do pedófilo torna a criança apetitosa; o da mãe, a torna inocente; o do humanista confere dignidade ao criminoso que, pelas maiorias morais, já tinha se feito monstro.

Não alimente os presos!
Somos criaturas de relação não apenas porque precisamos dos outros para sobreviver, mas porque precisamos deles para ser algo mais do que uma besta de cerébro avantajado. Um cão pode ser um cão na ausência de outros cães, enquanto nós só nos "humanizamos" no contato com nossos semelhantes, no reconhecimento recíproco de nossa humanidade. O outro-semelhante é nossa completude. Não é que seja, como diz a canção, impossível ser feliz sozinho, é mais do que isso: é impossível ser sem ser junto.
Os párias de todo lugar, os deserdados, os que perderam a referência do olhar que humaniza, vivem num mundo existencialmente precário. Zumbis em marcha pelo abismo.
Vemos esses andarilhos de beira de asfalto: roupas podres, barba cavernosa, e um andar apressado como se estivessem a ponto de perder o vôo. Para onde vão esses indesejados com ares de subespécie? Seguem algum tipo de fluxo migratório? Seus resmungos de loucura, sua pele torrada a 40 graus, sua decisão firme de manter-se paralelo ao traçado da BR, atravessado por milhares de olhares motorizados, parece indicar uma necessidade de reforço megalômano de sua condição de caos ambulante. Um milhão de olhares e nenhum reconhecimento de similitude, não tem como não se permanecer indigente...
Saio da BR, entro na sala de aula.
Então os alunos me perguntam:
- Professor, quando é que a gente vai visitar o presídio?
- Vocês querem ver presos?
- Queremos!
- Façam publicamente um ato moralmente vergonhoso, depois tranquem-se no quarto e, passadas algumas semanas, olhem-se no espelho.
- Ah, professor, mas assim não vale, nós somos normais.
- Pois é, vocês são normais... Agora entenderam por que eu nunca irei levá-los?
- Não!
- Porque criaturas que se acham normais portam olhares anormalizantes e é justamente esses olhares que fazem com que estar na penitenciária seja intrinsecamente diferente de estar trancado no quarto.
- O Senhor está dizendo que a gente iria para estigmatizar os presos?
- Não, eu estou apenas dizendo que vocês aproveitariam melhor o seu tempo indo ao zoológico.
- Mas - ironiza um deles - nós não fazemos Biologia e sim Direito!
- Porém carregam os mesmos olhares dos biólogos diante de colônias de bactérias... O dia que construírem o olhar da semelhança, poderão ir à vontade, pois então a curiosidade de "ver presos" será substituída pela angústia da troca de olhares entre humanos. E aí,meus amigos, o bicho pega e vocês nunca mais vão conseguir dormir em paz, pois perderão a fantasia do que separava o eles e o nós. É mais ou menos como, aos 6 anos, descobrir que o papai noel sempre esteve na casa da gente, com a gente, e que qualquer um pode vir a sê-lo: inclusive eu ou vocês...
- Entendi, prof! Acho que o zoológico será mais divertido mesmo...
- Com certeza! Até a próxima fase.

Pego o carro e o pensamento retorna. "Quantos quilômetros já há avançado aquele andarilho de horas atrás? Quantos dias falta de sua jornada ao infinito de nossa indiferença?".
E decido não voltar pela BR.

Sandro Sell
Imagem: Pablo Picasso: Girl Before a Mirror,1932.


sexta-feira, 2 de julho de 2010

A filosofia do espelho

Ser é ser percebido.
Essa frase de George Berkeley sempre me perturbou. Ser é ser percebido, ou seja, nada existe fora da percepção. A existência dos seres no mundo depende do fato de que alguém os esteja notando. Se ninguém notar, eles não existem.
Se os idealistas berkelianos estiverem certos, o mundo humano é, então, semelhante a um sonho, se pararmos de sonhar (perceber onírico), toda aquela “realidade” que nos encantava, agoniava, excitava ou apavorava desaparece imediatamente.
O que reflete o espelho quando ninguém o está vendo?
Refletiria as coisas que estão à sua frente? Não, ele refletirá as "coisas" habituais apenas se um humano olhar para ele. Loucura? Em termos práticos, parece. Mas se você pensar que as coisas como as percebemos são o resultado da “leitura” que nossos sentidos fazem delas, a afirmação começa a fazer sentido. O espelho do daltônico não faria distinção entre verde/vermelho; o do cão não atribuiria às coisas à maior parte de suas cores; o da anoréxica mostraria gordura onde outros só veriam pele e osso. Isso ocorre porque o espelho não reflete as “coisas”, ele reflete, isto sim, a “nossa percepção” das coisas. Logo, nada parecido com o que vemos no espelho pode estar nele sem alguém que o perceba.







**espelho de anoréxica, mentiroso. Mas qual não é?**




“Ah”, diz você, “mas as pessoas normais verão todas as mesmas coisas!” Se é que existem coisas além da percepção, o que você está chamando de normal são as pessoas que possuem uma percepção semelhante à maioria das outras. Anoréxicas, cães e daltônicos não são os normais para o caso. Mas se o daltonismo fosse a regra entre humanos, quem não o fosse seria acusado de imaginar distinções de cores inexistentes na “realidade”. Em terra de cego –dizia Marceu Mauss – quem tem um olho só é aleijado! Não, a vantagem dos “normais” não está em perceberem corretamente (em relação à realidade das coisas), mas só em perceberem da forma socialmente normatizada para cada funcionalidade social (homens não vêem a metade das coisas que as mulheres vêem em seus espelhos!). E o socialmente útil não significa essencialmente verdadeiro.
Assim, uma pessoa que não visse as coisas invertidas no reflexo do espelho (o lado esquerdo tornando-se direito e vice-versa) como fazemos, veria uma imagem mais próxima da “realidade” do que a nossa, e seu espelho mostraria – para ele – uma outra imagem. Da mesma forma, quem tivesse uma visão tão potente quanto um microscópio, veria no espelho um mundo bastante distorcido em relação ao nosso habitual (ele logo teria que adquirir um espelho que diminuísse sua capacidade, sob pena de enxergar milhares de ácaros na sua face, ao invés de a barba por fazer). Que espécie de visão reflete exatamente o mundo lá fora?
Se há um mundo lá fora, não podemos saber, - a não ser com ajuda do nosso cérebro que, na melhor das hipóteses, filtra ao seu capricho à realidade que lhe chega e, na pior, cria a própria "realidade" que jamais existiu. Mas como não podemos ir lá fora sem nós mesmos, estamos condenados a viver sem saber se nosso mundo é uma conspiração da matrix ou a realidade em si é isso que de fato nos parece ser. Como dizia Wittgenstein: “não é possível sair da própria pele, analisar nossas práticas de um lado, o mundo do outro e voltar para comentar essa relação.”
Voltemos ao espelho.
 Aí você diz: “tudo bem, mas alguma coisa é refletida, ainda que nunca venhamos a saber exatamente o que é!” Bem, a nossa questão não era apenas se alguma coisa estaria sendo refletida na ausência de expectadores, mas se o espelho refletiria aquilo que ele habitualmente reflete, aquilo que faz com que o tenhamos instalado no móvel.
Fantasmas.
Durante boa parte da infância, eu acreditava que os espelhos solitários na casa germânica da minha avó paterna podiam refletir fantasmas, almas de meus antepassados, - em geral com intenções mesquinhas e vingativas, porque havíamos descoberto no sótão seus velhos vestidos e moedas. E, de fato, muitos de nós (primos) acabamos vendo tais almas. Ilusão? Talvez... mas bobagem? Não sei. Só sei que se ser é ser percebido, aquilo que é percebido, ainda que erroneamente, ganha vida. Como argumenta a criança apavorada pelo pesadelo que a acordou: "como pode ser falso um monstro que me deixou assim?" (e pega a mão da mãe e põe sobre seu coraçãozinho saltitante). O monstro de pesadelo é tão real que pode enfartar o cardíaco enquanto dorme.
(e se a realidade não passasse de um sonho coletivo? - questionava-se Descartes, nas suas Meditações).
Por uns momentos, a ilusão compartilhada entre primos criou fantasmas, ressuscitou antepassados, povoou o sótão de assombrações. Quando crescemos, os estudos, a ciência, a razão, essas outras ficções, nos proibiram de ver tais coisas (de fato, só os que não foram à universidade continuaram percebendo...). E então – em tardias racionalizações - vultos no espelho tornaram-se apenas distorções provocadas, quem sabe, por alguma luz refletida, cuja origem não identificamos. Os espíritos voltaram às suas tumbas.
Esquecidos, eles de fato morreram.
( Às vezes acho que gostamos tanto de histórias de fantasmas pela esperança de que nos aconteça, após a morte, o mesmo que aconteceu com os fantasmas de meus antepassados: passem, nos velhos espelhos, a serem novamente percebidos e, assim, pela mágica da percepção alheia, voltem à vida. Alma penada seria, então, alma percebida. Alma intrometida novamente no mundo pela existência que os crédulos acharam razoável lhes dar. Alma penada é alma viva. Quanto às outras... bem, essas estão além da percepção, além do espelho, num mundo que, desde Kant, parece estar fechado para nós...).

Não me xinguem por tais reflexões! Quando não se é perfeitinho, refletir sobre o espelho pode ser mais divertido do que ver-se refletido nele.

Sandro Sell


Só a derrota é democrática...


Ouça-me bem amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões à pó.
Preste atenção querida

De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás a beira do abismo
Abismo que cavaste com teus pés
(Letra do Cartola na voz do Mick Jagger)

- Depois vocês falam que liberar a maconha não dá bons resultados...

Sandro Sell

Disse o Paulo César Nascimento:
(...)
Então, por que raios o Brasil levou essa laranjada em 2010?
Porque das quartas de final em diante a Copa é muito nivelada, decidida em detalhes: falhas, contusões, substituições, apitos, bandeiradas, propinas, rixas e até na mão de Deus. A vitória é que é a exceção, não a derrota: trinta e uma seleções perderão a Copa e só uma a vencerá. O mais estranho não é termos perdido quatorze copas, mas sim termos vencido cinco delas. As outras seleções também são protagonistas e não apenas coadjuvantes em um sonho ufanista brasileiro de monopolizar as vitórias no futebol. É como a piada do brasileiro que foi à Espanha, parou em um restaurante perto da plaza de toros e degustou um prato típico: cojones (os testículos do touro). Gostou do prato e comeu mais duas vezes nos dias seguintes. Na quarta vez, porém, a porção veio muito menor e ele se queixou ao garçom, que respondeu: Cavalheiro, nem sempre é o touro quem perde.
Confiram a análise do Paulo em http://realidadecontundente.blogspot.com/2010/07/motivos-descosturados-e-desculpas.html
Vale muito a pena!

Queria mais feriadinho?