sexta-feira, 7 de maio de 2010

O sagrado direito de duvidar

“Grande e sem limite é minha tristeza. Ninguém sabe disso, exceto Deus no Céu, e Ele não pode ter pena.” (S. Kierkegaard).

Vim disposto a falar sobre Deus. E isso não é fácil. Nunca foi. Já rolaram cabeças e reputações por tal ousadia. Não pretendo ser a próxima vítima, por isso alego, em preliminar, que aqui não discutirei Deus em essência. Como poderia? Falarei tão-somente de algumas idéias que minha espécie – a humana – tem feito dele, ou melhor, Dele.
Falarei Dele porque Ele não fala comigo. E esse silêncio é insuportável. Seus supostos mensageiros, ah, esses sim falam demais, porém não convencem. Não é com esses que eu quero falar, quero o direito de ter uma audiência direta com o Pai, e com mais ninguém; quero perguntar-Lhe, à moda de Milton, frivolidades essenciais do tipo: por que transformou meu barro em homem? Por que me fez um animal metafísico que passa os dias a ruminar acerca de seu destino último? Por que sou esse serzinho que chegou à metade de sua existência provável sem ter a mínima idéia de se terá que enfrentar o Ser ou o Nada? Diga-me, Senhor Deus, sem metáforas, sem rodeios, sem intermediários, o que será feito de mim e dos meus?
Não chego aqui, então, para ofender carolas, beatos e suas crenças. Se podem crer firmemente – o que eu duvido – que se agarrem a isso! Não questionem, creiam, pois crer é mais útil do que saber. Os seres humanos não foram feitos para a verdade, não somos animais epistêmicos, fomos feitos para levar a existência como os camponeses de Montaigne: “Vão, vêm, pulam e dançam; e da morte nenhuma palavra.” Silêncio.
Outro dia minha filha de cinco anos perguntou: “Eu também vou ter que morrer, pai?”, Sim, um dia, respondi. “Mas por quê?”. Não sei, querida, só posso lhe dizer que há perguntas que quanto mais tarde a gente fizer, mais gostoso é o sorvete, mais doce é a noite e mais leve é a vida. Com mais poesia, Fernando Pessoa teria dito o mesmo:
“Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!”
Não tenho lá muita convicção de ter driblado a angústia da pequena Júlia. Mas, o que mais eu poderia fazer? Honestamente, dado que eu não tinha a resposta, só me sobravam o drible e o silêncio.
Mas Dele, eu posso exigir uma resposta que não seja um drible. Ele tem que me dar uma palavra sobre a morte e a vida. E tem que ser rápido, porque o tempo na Terra é acelerado para quem é mortal. Não posso por isso esperar a provável volta do Messias, pois temo já não estar aqui para recebê-lo. Eis o drama humano genérico encarnado em minha pessoal singularidade.
O que segue então é, à moda do que se faz em direito, apenas um embargo de declaração, recurso que interponho contra as lacunas e obscuridades presentes nas mensagens das religiões e seus heróis. O objetivo é simples: dizer que me deram razões insuficientes para crer e que viver assim não tem sido fácil.

Vamos ao texto.

Das provas da existência de Deus
Pesado e medido, acerca de Deus só temos provas testemunhais, aquelas mesmo que o velho jurista chamava de “a prostituta das provas”, dada facilidade com que se prestam à fraude. Se o testemunho for de um só, então o risco do engodo é tão considerável que a prudência romana não queria sequer ouvi-lo: testis unus, testis nullus.
O falso testemunho não é um problema relativo apenas ao estreito universo do Direito, na Ciência e na Religião ele também costuma aparecer, fazendo emergir um preocupante manancial de falsas alegações, falsas confirmações, falsos milagres e falsos santos.
Em adição, o testemunho humano quando não é frontalmente malicioso, corre ainda o risco de ser incorrigivelmente ingênuo. Nessa modalidade, a pessoa pensa que viu o que não viu, que ocorreu de uma forma o que ocorreu de outra, ou tira conclusões irrelevantes acerca do efetivamente visto. Assim não é raro um indivíduo dizer: “Eu posso dar testemunho de Deus, pois estava com câncer e me curei de uma forma que os médicos não puderam explicar!”. Ora, uma pessoa sensata só poderia disso concluir que sua cura estava fora do previsto pela Medicina e não que foi “Deus”, especificamente, que o salvou. Repare, inclusive, que um eventual crente no poder dos duendes poderia ter atribuído a eles a causa do seu “milagre”, - o que não seria logicamente diferente de atribuí-lo a Deus, já que os únicos fatos com os quais se está lidando, no caso, são a cura e a ignorância a seu respeito. Da ignorância não podemos derivar a existência de seres, quanto mais de seres específicos, ao estilo: “Só pode ser Deus”.
Por isso juizes e cientistas costumam ser bastante cautelosos com as testemunhas em geral. Pessoas ingênuas que vêem luzes no céu e que, por não saberem do que se trata, logo concluem serem “discos voadores”, e pessoas que identificam, “pelo jeito suspeito de olhar”, que o acusado deve ter sido mesmo o culpado são antes óbices que auxílio na busca da verdade.
O problema se agrava ainda mais caso as testemunhas forem de má reputação, ou se o seu testemunho harmonizar-se com seus interesses ou crenças. O testemunho de um médium sobre a verdade de um documento ter sido de fato produzido em estado de transe durante uma sessão espírita, é mais difícil de acatar do que o de um padre que, contra sua crença oficial, o confirmasse.
Boas testemunhas seriam, então, aquelas de boa reputação e não parcialmente interessadas no deslinde específico da questão.
Nesse aspecto as coisas se complicam para Deus, ou melhor para nossa crença Nele. Primeiro porque quase todos os testemunhos de manifestações de Deus provêm de funcionários de igrejas ou de seus mais fervorosos beatos. O testemunho de Saulo de Tarso seria nisso uma exceção, já que ele fora surpreendido por uma visão divina oposta às suas crenças, capaz de convertê-lo de perseguidor implacável de cristãos em seu embaixador máximo? Creio que não. Na essência, Saulo já era um crente, só migrou do Deus judaico para a sua mais notória dissidência, o Deus do cristianismo, - que nem é tão diferente assim. São extremamente raros os testemunhos de descrentes de verdade. Em regra, primeiro a pessoa se converte, depois recebe a graça de uma audiência particular com Deus ou suas hostes.
Mesmo a mais nobre testemunha divina – um certo carpinteiro – era pessoa má vista em sua comunidade, andava com pecadores, prostitutas, tinha pouca instrução, ainda que para os padrões da época. Não gozava de boa reputação geral, razão pela qual fora confundido com bandidos e equiparado a eles quando de sua condenação. Subiu à cruz sem conseguir provar a existência daquele que, segundo ele mesmo, faltara na hora marcada: “Por que Me abandonastes?”. Se o testemunho de Jesus não convenceu seus contemporâneos, que o mataram, por que convenceria as pessoas que dele só ouviram falar por relatos? Por que só uma escassa minoria dos que o conheceram pessoalmente levaram fé no que ele disse? Diante disso como aceitar facilmente que, muitos séculos depois, milhões de pessoas dizem-se tocados pessoalmente por suas palavras, como força viva? Seja como for, é certo que o impacto das palavras que Jesus pronunciou em vida foi imensamente menor do que aquele causado por elas após sua morte. Fruto da ressurreição, dirão alguns, ao que se responde: da crença na ressurreição, cuja garantia de ocorrência, novamente, depende do crédito que se atribua às poucas testemunhas que a alegaram, e que, logicamente, tinham interesse em propagar a história de que seu deus havia sobrevivido à crucificação.

Prova lógica
Conscientes de tais dificuldades, alguns funcionários da Igreja tentaram formular outras espécies de provas, cuja força não derivasse de relatos testemunhais. Santo Anselmo de Cantuária, ainda na Idade Média, foi um deles. Seu argumento ontológico constituiu uma criativa forma de validar logicamente a existência de Deus, sem que se precisasse apelar às sempre questionáveis verificações de fatos históricos.
Mais ou menos, dizia Santo Anselmo: por definição Deus é o ser perfeito, insuperável, e nosso entendimento pode compreender o que isso significa. Perfeito é aquilo que não pode ser aperfeiçoado, aquilo a que não falta nada, absolutamente nada, caso contrário não seria perfeito. Sabendo o que significa ser perfeito e que temos o entendimento de que Deus o é, pergunta-se: se Deus não existisse ele seria perfeito? Claro que não, já que lhe faltaria o mais essencial: a própria existência. Lembre-se de que ser perfeito significa ser completo, não carecer de nada, e quem carece de existência, carece de tudo.
Portanto, se Deus é perfeito, ele tem que existir. Se ele não existisse, não seria perfeito e assim não seria Deus. Em resumo: sem o atributo da existência, Deus não é perfeito e sem a perfeição Deus não é Deus, o que levaria a uma contradição lógica.
Deus existe, em verdade e lógica! (?)
Apesar da elegância de tal raciocínio, que foi rejeitado por São Tomás de Aquino, ressuscitado por Descartes, e combatido por Hume e Kant, - já que derivava a existência de um ser a partir de atributos que a ele havíamos previamente atribuído. Com efeito, como poderíamos dizer que Deus é perfeito antes de termos presumido sua existência? Fica parecendo uma daquelas esféricas verdades chinesas: "Deus existe porque é perfeito e é perfeito porque é Deus".
Mesmo na época de Anselmo, seu argumento foi ironizado. Adaptando o contra-exemplo de seu contemporâneo Gaunilo (que era um monge católico), também poderíamos dizer: dado que posso conceber a idéia de uma mulher perfeita, ela terá necessariamente que existir ou perfeita ela não é, já que lhe faltaria um enorme detalhe: a existência. Isso demonstra que meu entendimento é capaz de criar conceitos absolutos, como perfeição, sem que necessariamente eles tenham que existir na realidade. Em outros termos, um raciocínio de linguagem só pode gerar resultados de linguagem, e não inferir, como logicamente necessária, certa realidade, quanto mais as absolutas.
O mesmo vale para o argumento da complexidade. O fato de haver muitas coisas complexas, de uma beleza ou harmonia incompreensível para a ciência (como o universo, as células, o olho humano) não significa necessariamente que são obras de Deus. Não podemos deduzir um ser para completar as lacunas de nossa ignorância. Da ignorância não se inferem realidades. Ora, se alguém dissesse no senado romano, alguns anos antes de Cristo, que a partir de uma caixa com um vidro - uma televisão - na frente seria possível, um dia, assistir ao vivo a campanhas militares, como a de César na Gália, os sábios da época diriam que só os deuses seriam capazes de tal astúcia. Os índios sul-americanos tinham um deus para cada fenômeno que desconheciam. Deus e o inexplicável se confundiam. Isso significa que quanto maior for a ignorância científica de um povo, maior o espaço para o seu “sobrenatural”. Há de fato coisas que não somos capazes de entender, nossa ignorância é vasta, vastíssima até. Mas deduzir a existência de Deus por causa do que nos é incompreensível é fazer como os matutos que criam extraterrestres quando não conseguem entender o sumiço repentino de alguém.
Quando não sabemos o que causa algo, melhor investigarmos, aceitar com paciência a dúvida ao invés de povoar as lacunas de nosso saber com criaturas desejadas. Como disse Joubert, “mais vale examinar uma questão sem resolvê-la do que resolvê-la sem examiná-la”. O mesmo vale para a idéia de “as perfeitas leis do universo só poderiam ter sido escritas por...”, Deus? Ou por algum modo que até agora não compreendemos. Atribuir isso a Deus, sem mais, é comprometer-Lhe a reputação no caso de amanhã os cientistas encontrarem uma explicação materialmente razoável para tal.
Se Deus é perfeito, ele não precisa de nossas fraudes lógicas para confirmar-lhe a existência.

Evidências
Faltam evidências acerca da existência de Deus. Tudo bem que o Sol brilha, as estrelas reluzem no firmamento, a criança cresce e os amantes se deliciam. Mas igualmente há o câncer que corrói, o tsunami que devasta, a morte prematura que agarra, a cegueira de nascença. Parece até que, bem ponderado, a maldade cósmica para conosco supera infinitamente a bondade.
Pessimismo?
Por mais feliz que seja uma existência humana, ela é, à semelhança da lingüiça no freezer, dotada de prazo de validade. Poderíamos até vir com a advertência: “Consumir preferencialmente antes dos setenta anos. Depois, manter refrigerado e, por fim, depositá-lo no solo de forma ambientalmente correta”.
Se Deus de fato existir, Ele tem que nos explicar muito por que não disse que estava aqui. Por que nos deu a razão para dele duvidar e em função disso - pecado de pensamento - ser jogado no porão do inferno? Que urupuca é essa? Aceita-Me ou devoro-te!
Albert Camus tinha razão quando dizia que diante de nossa necessidade de resposta acerca do nosso significado no mundo e do silêncio na resposta – o universo não fala nossa língua -, a única saída era a revolta. Revoltar-se contra o silêncio, pela falta de gentileza de um ser aparecer e dizer: “Eu estou aqui”. Mas ao contrário, seguindo as crenças expressas pela maioria das religiões, esse ser mandaria seus eleitos, ao que parece, com uma única função: cobrar vassalagem. Devemos ser humildes, tementes, submissos, pormo-nos de joelhos, confessarmos nossos pecados, fazer de conta que não duvidamos. Por que o orgulho é um pecado. Pecado divino por excelência, pois é o que cobra mesuras e não os que as fazem que se considera acima dos demais.
Deus nos criou assim perecíveis, estúpidos, sujeitos a doenças, a vermes, tendo que manter comidas apodrecidas dentro do corpo, para que tivéssemos que lembrar, diariamente, do lixo que somos... Diante disso ainda vem pedir para que sejamos humildes? Não precisava, Excelência. Nosso orgulho é apenas uma forma de revolta, uma frivolidade menor, uma mania de nos fazermos de importantes antes que o ceifador sinistro venha rir por último. Nosso orgulho – como disse Victor Hugo – não é um vício, é apenas a prova do nosso ridículo.

Na história
Os deuses quase nunca foram flores que se cheirasse. Na maior parte das culturas, eles exigiam sacrifícios humanos, queriam virgens, queriam filhos. “E Deus disse: “Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac; e vai à terra de Moriá, onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes que eu te indicar.” (Gênesis 22,2)”. Com o tempo, evoluíram e passaram a exigir apenas sacrifícios de animais (no caso acima, Deus teria se contentado com um cordeiro). Evoluíram ainda mais e, de acordo com seus procuradores na Terra, passaram a aceitar penitências, doações e hoje, em certas igrejas, aceitam até vale-transporte e ticket alimentação.
Ademais, se a idéia de nossos religiosos coincidir com a natureza de Deus, a organização política do céu parece mesmo é com o Brasil. Sua oração tramita muito mais rápido junto ao Padre-Eterno se você tiver um pistolão. Nesse caso, vou toda noite de Ave Maria, na esperança de que o “rogai por nós pecadores...” faça a minha oração subir sem maiores entraves burocráticos. Ora, ou o pedido é justo e Deus, sendo perfeito, irá atendê-lo, ou é indevido, e deve rejeitá-lo. O que não parece razoável é que, pelo intermédio de Maria, Ele mude de idéia, ou que precise dela para atentar para a justeza da solicitação – neste caso onde foi parar a perfeição?! Será que até no Céu só podemos pedir algo via advogados?! Ou lá, como em alguns lugares desse planeta, é mais útil para o convencimento do magistrado os amigos que se tem do que a razoabilidade do pedido que se faz?
Muitos sujeitos são devotos desse ou daquele santo, dependendo da especialidade do seu problema (se é casamento ou doença, cadeia ou intestino preso). Santos especialistas. “Matrimônio, matrimônio? Isso é lá com santo Antônio.” Parece até o cidadão comum dizendo: “Vou falar direto com o ortodontista.” ou “O meu vereador já disse que vai dar um jeito no meu IPTU”. É a idéia do santo especialista, do santo advogado, do santo despachante, do santo pistolão, do santo que faz jus a honorários, pagos em velas e ajoelhamentos. Isso sem falar das entidades pistoleiras de aluguel, que fulminam seus inimigos por módicas oferendas de encruzilhada.
Acho que alguém tem que falar ao Padre-Eterno que sua assessoria está levando por fora – em velas e preces - para fazer o que lhes seria devido por caridade. E o pior: seus mensageiros estão fazendo os pobres-diabos subir escadarias de joelhos, fazer procissões, pagar por celebrações, tomar banho de descarrego, comprar cachaça e charuto e dar o que não têm para os que não pretendem jamais descer do trono.

Revolta infantil
Essa revolta infantil aqui manifestada pode ser, na verdade, como dirão os críticos, um mero choro de criança contra as decisões do santo Pai que ele, por ser pequeno e estúpido, não compreende. Nesse caso, eu poderia antever qual seria a resposta do Eterno: “deixe-o chorar que quando ele crescer, vai compreender meus mistérios”, - os mais exaltados esperarão que um raio me parta!
Então vamos mudar a linha de argumentação, concedendo a Deus a gentileza do in dúbio pro Criador.
O deus do meu jardim
Será que a rosa sabe que o jardineiro existe? E se sabe, compreende suas podas e transplantes? Se Deus é o ser perfeito - o Sumo Jardineiro - eu seria, na melhor das hipóteses, a bonitinha, mas ainda assim estúpida rosa. Como querer compreendê-lo sem cair no ridículo? Minha existência de poucos dias me capacitaria para entender o eterno? Ou minhas conclusões sobre Deus seriam tão ridículas quanto a ilustrada por Fontenelle, ao relatar que “até onde qualquer rosa poderia lembrar nenhum jardineiro havia morrido.” Até onde este autor pôde notar, a presença de Deus não se fez sentir de forma indubitável. Mas quem é esse autor senão a rosa falando do jardineiro?
Pode ser mesmo difícil afirmar se Deus existe ou não. Vai ver até que as chances são iguais para os dois lados. E quanto mais pensamos mais confusas se tornam as coisas. Sagaz mesmo foi Tertuliano (155-220) quando afirmou: “Credo quia absurdum” (creio porque é absurdo). Com isso, o teólogo cristão quis dizer que a base da fé não pode ser a razão, afinal Deus, com Cristo, se revelou a nós de forma absurda: ele poderia ter mandado um super-Aristóteles refutar qualquer problema lógico que pudéssemos esboçar à sua existência, poderia ter mandado exércitos de Einsteins viverem entre nós para satisfazer nossas demandas por verdades, mas não: ele mandou seu filho vestido na humildade dos ofícios manuais. Poderia tê-lo mandado assumir o trono na Terra, mas o mandou agonizar na cruz como um criminoso. Isso tem um caráter de ilógico, de absurdo, de milagre, de infinitamente diferente do que esperávamos... São as linhas tortas pelas quais Ele escreve...
É possível que Deus tenha feito isso porque sabia que a razão da rosa era incapaz de compreender a razão do jardineiro. Então, simplificou, mandando que escutássemos parábolas e relatos simples, até que um dia, quem sabe, possamos escutar explicações de verdade. Quando nossos filhos vão deitar, não lemos tratados de física quântica para eles, lemos coisinhas para que durmam, e dormindo, não nos perturbem com maiores interrogações. As parábolas tranqüilizam as crianças. Mais tarde eles terão chance de aprender... por enquanto, Deus zela pelo nosso sono...
Para que a inteligência se a crença desaconselha seu emprego? Sei lá... é estranho mesmo. Mas Deus parece ter essa mania: dá-nos a razão, porém - fórmula de Tertuliano - pede para que Dele nos aproximemos pelo absurdo; dá-nos desejos, mas exige que os controlemos; não nos dá certeza, mas quer fé inabalável. Diante disso a quem compararei este Deus? “É semelhante aos meninos que, sentados nas praças, clamam aos seus companheiros: Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamos lamentações, e não pranteastes. Porquanto veio João, não comendo nem bebendo, e dizem: Tem demônio. Veio o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizem: Eis aí um comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores” (Mt, 11). Ou seja, recebemos um baita equipamento cognitivo (nossa razão) e muitos comichões animais (nossos desejos e apetites), mas, pelo menos em face de Deus, não devemos usá-los. Esses foram nossos presentes e nossa maldição. Isso parece até uma parábola, de um pai que dera de presente para seu pequeno filho um isqueiro e uma garrafa de álcool, e quando este se queimou disse: “Néscio, por acaso não desconfiastes da tentação a que vos submeti? Porque não fostes prudente como a serpente, ardeis agora no fogo.”
Um deus terrível
A concepção que nossa cultura tem de Deus não é de um ser bondoso, mas de um ser que carrega em si todos os vícios dos monarcas históricos: vingador implacável, queimador de sodomas e pompéias, requisitador de súplicas, concedente de mercês, mantenedor de infernos e calabouços, negligente para com o sofrimento dos inocentes, criador de culpas presumidas e pecados originais, dono da verdade, senhor da vida e da morte. Todo-Poderosíssimo.
Ora, dirão, você não está falando de Deus, mas de uma certa compreensão sobre Ele, uma compreensão equivocada, na qual inserimos na figura de Deus nossos defeitos. Deus é infinitamente bom, má é a descrição que Dele fazemos.
É possível.
Mas há também outra possibilidade, terrível é verdade, mas que há, há. Se não somos competentes para interpretar a natureza de Deus, se projetamos Nele o que há de pior em nós, podemos igualmente ter projetado Nele também nossa aspiração de que Ele seja bom, justo e misericordioso. Se o compreendemos equivocadamente, se somos a rosa em face do jardineiro, podemos errar para os dois lados. Como saber se o Deus bom é o Deus que existe ou o que queríamos que existisse? Terei que voltar ao valor dos testemunhos...
Talvez Deus seja mau. Goste do espetáculo de ver-nos construindo nossos sonhos, cultivando nossas habilidades e celeiros para, na calada da noite, vir nos ceifar. Pode lhe ser cômico assistir à primeira espécie de animal consciente do seu funesto destino – a morte – debatendo-se impotente para dele se defender. É possível que seja mesmo hilário ver esse animal se travestir de herói, se encher de coquetismo, ir à Lua, criar teologias e tecnologias, gerar filhos e sonhos para, inexoravelmente, entregá-los ao implacável abismo que nos espreita...
Essa não é uma tese forçada. È a compreensão mais comum dos deuses ao longo do tempo. Dizem que as culturas indígenas do México se chocaram com a revelação dos padres católicos de que estes vinham representando um Deus que se oferecera em sacrifício, quando os nativos estavam acostumados a deuses que mandavam sacrificar. Ao longo da história deuses foram mesmo mais temidos que amados.
Estaria eu me afundando em absurdos cada vez maiores? Volto a repetir: de onde provêm as noções do que/quem é Deus? Alguém pode gabar-se de ter acesso direto a Ele? Ah, você confia na veracidade dos relatos que lhe foram apresentados. Tudo bem. É uma crença. Pode ser verdadeira, pode ser falsa, pode lhe ajudar a viver, pode ser muito, mas é preciso crer para ver.
A verdade, se há alguma, é que se não somos competentes para conhecermos nem a nós mesmos, o que se dirá da pretensão de dizer: “Eu conheço Deus no meu íntimo!”. Isso é tolice. Quem não se conhece em essência – todos nós – não pode ter a pretensão de conhecer algo/alguém supostamente muito maior que nós...
Mas há um tertium genus entre o deus todo bondoso e o deus maldoso: o deus indiferente. Um deus que não se ocupa das coisas humanas, que, talvez, tenha mais o que fazer. Um jardineiro desinteressado pelas suas rosas. Bem pesado e medido, esse é o deus mais fácil de defender a partir do absurdo desse mundo. Catástrofes e dores atrozes ao lado de belezas e prazeres. Contra-senso deliciosamente apontado por Machado de Assis: “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”. Deus não tomaria ciência ou parte em nada disso. O mundo humano, com suas contradições, abundâncias e martírios, não Lhe seria afeito. Problema humano não atrairia a atenção do Sumo Perfeito.
Essa hipótese assusta.
É engraçado que os historiadores dizem que o orgulho humano foi seriamente abalado com a mudança do sistema geocêntrico para o heliocêntrico. Tenho minhas dúvidas. Não conheço ninguém que, na prática, esteja lá se importando se é o Sol ou a Terra que gira em torno do outro. Isso parece descrição de historiador das idéias e não das idéias na história. Até porque o fato de algo girar em torno de outro não significa o que domina o quê. Não precisaríamos nos abalar por tal mudança. Era só fazer o que de fato fizemos: modificar o conceito de centro de universo. É centro do universo o planeta que possuir a forma de vida mais inteligente. A Terra, pronto! O Sol que continue a mandar em outras plagas, na anatomia do universo continuamos no umbigo.
Agora se Deus fosse algo semelhante ao deus de algumas concepções teológicas, um deus que está de costas para o universo, que o move, mas nele não interfere. Se Deus fosse como eu em relação ao bem-estar das plantas de meu jardim: não me interessando se essa morreu ou aquela floresceu, me interessando apenas pelo todo: se o jardim está bonito ou não, aí sim estaríamos órfãos. Não boto nome nas plantas, porque elas são fungíveis – uma planta pode ser trocada por outra mais nova. E se Deus agir assim conosco? Se para Ele eu for uma individualidade fungível, uma formiga cujo sofrimento ou morte é incapaz de abalar a força do formigueiro? Então teremos sido retirados do centro do universo.
É por isso que nós homens sempre preferimos os deuses perversos a deuses indiferentes. Pois um deus perverso – como qualquer sujeito mau – dá importância as suas vítimas. Diante de seu altar pedimos clemência, misericórdia, mea culpa mea culpa. Agora diante de um deus indiferente nós pedimos, louvamos, xingamos e ele permanece em silêncio.
Pior do que as pessoas que nos odeiam são aquelas que nunca notaram nossa existência. As primeiras podem nos fazer mal e até mesmo nos extinguir, mas só as segundas podem nos convencer de que viver não vale a pena. O perseguidor nos atribui valor na exata medida que nos persegue, já o indiferente nos retira o valor proporcionalmente ao que não percebe.
Enquanto escrevo isto, sinto a nítida impressão de que estou sendo observado, de que vou ser castigado... Tranqüilizo-me! Pior seria se Deus sequer lesse esse desabafo...
27.06.09 - Sandro Sell

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