terça-feira, 11 de maio de 2010

Teorias causais-explicativas do crime II



Teoria do condicionamento anti-social


É possível que a tendência à agressão e ao crime seja fruto de um condicionamento educacional mal-sucedido? Será que a falta de punições às tendências egoístas da criança, ou a falta de incentivos aos seus comportamentos altruístas, explicam o motivo pelo qual muitas delas acabam enveredando pelo caminho do crime? Há, de fato, quem sustente que os futuros criminosos serão compostos preferencialmente por crianças não “treinadas” a associarem a sentimentos de ansiedade e culpa suas práticas agressivas.
Alguns estudiosos sugerem que o caminho do crime é exatamente este: a falta de associação entre comportamentos hostis e sentimentos de ansiedade e auto-reprovabilidade. Baseiam-se na transposição para os humanos da famosa experiência de Ivan Pavlov (1849-1936) com cães, que resultou na idéia do condicionamento clássico. Segundo tal idéia, alguns de nossos comportamentos são reflexos incondicionados, enquanto outros são reflexos condicionados, isto é, adquiridos a partir de uma associação repetitiva com um estímulo gratificante (o que nos induziria a praticá-lo) ou aversivo (o que nos levaria a evitá-lo).
Na experiência original de Pavlov, cães foram submetidos a repetidas situações em que a chegada da comida era precedida pelo som de uma campainha. Se antes de certo número de repetições os cães só salivavam diante da comida, após algum tempo acabaram por salivar também diante do som da campainha, viesse ou não comida, pois haviam associado seu som à chegada do alimento. O estímulo neutro inicial – o som da campainha – tornara-se um estímulo condicionado.
Se tal princípio é correto, em termos do comportamento humano, depois de experimentarmos repetidas vezes gratificações associadas à prática de determinada ação, sentiríamos prazer em realizá-la, mesmo quando fosse retirada a gratificação inicial. Será que isso ocorre, por exemplo, quando colocamos nossas crianças para assistirem a filmes violentos e enchemos suas mãos com pipocas e refrigerantes? Estariam elas associando a violência da tela à sensação de bem-estar e saciedade? Se isso ocorre, poderemos estar condicionando as futuras gerações à violência.
O mesmo ocorreria pela sensação de vitória e satisfação que acompanham o matar e destruir os inimigos virtuais num videogame? Com as inúmeras repetições do par matar/sentir-se bem, poder-se-ia estar reforçando as práticas de violência real? Muitos autores crêem que, com tais ações, estaríamos condicionando nossas crianças a, no mínimo, não verem nada demais na violência; no máximo, colocando-as a um passo do assassínio. Isso pode parecer exagero à primeira vista. Afinal de contas, o número dos aficionados por jogos eletrônicos violentos excede, em muito, o número daqueles que praticam violência efetivamente. O que significa que nem todos são suscetíveis a tal condicionamento na mesma medida. Mas é difícil negar que a associação matar/sentir-se bem acabará transposta para a vida real de alguns jogadores de videogame, num número suficiente para ser considerado um fator criminógeno, embora não linear e determinante.
Mas como se poderia usar tal teoria em sentido inverso, para diminuir a violência? Para adeptos desta corrente, a consciência humana contrária à violência seria o resultado do desconforto tantas vezes associado com nossos atos agressivos da infância, quando nossos pais ou cuidadores nos aplicavam punições. Se tal condicionamento for bem sucedido, basta ter a vontade de praticar atos violentos para surgir uma ansiedade desencorajadora. Assim, se cada vez que uma criança intentasse um ato violento experimentasse um desconforto, como um ralhar dos pais, seria provável que associasse sua má ação a conseqüências ruins em sua vida. O que faria com que desistisse da ação violenta.
E não é necessário que a associação comportamento violento/desconforto seja formada por castigos que envolvam forte dor ou coisa do gênero. Estudos com cães mostraram que pequenos desconfortos podem ter um papel mais adequado do que grandes desconfortos punitivos, que podem antes causar reações fortemente emocionais, do que uma associação desejada entre violência e desconforto. É a velha teoria de que é a pena certa e branda, mais do que a pena incerta e severa, que possui maior possibilidade de dissuadir o comportamento criminoso.
A abordagem do condicionamento ganhou forte influxo com o sucesso da psicologia animal, popularizada por psicólogos que trocaram seu foco de atenção principal, do estudo dos mistérios da mente, para o estudo do comportamento observável. Tratava-se de uma perspectiva psicológica conhecida como Comportamentalismo. Autores como John Watson (1878-1958) desejavam um conhecimento sobre o animal humano mais objetivo, descrito, preferencialmente, em termos de estímulo e resposta. Isso permitiria aquilo que as ciências do homem nunca foram eficazmente capazes: prever o comportamento humano. Dado um estímulo, poder-se-ia esperar a resposta comportamental correspondente. Aos processos mentais, propriamente ditos, restava uma importância apenas periférica.
Sob os auspícios de Burrhus Frederick Skinner (1904-1990), o Comportamentalismo ganha uma abordagem renovada e mais sociológica. A Psicologia seria pensada como uma tecnologia social. Poder-se-ia ter um bom controle do comportamento social humano trocando-se a idéia, largamente aceita, de punir os maus comportamentos pela idéia inovadora de premiar os bons. As sanções deveriam deixar de ser punitivas para serem, preferencialmente, premiais. Assim, ao invés de se concentrar apenas na punição dos maus motoristas (com multas e revogação da habilitação) seria mais eficaz premiar os bons condutores (dando-lhes descontos em taxas, impostos veiculares e equivalentes).
Essa visão materializou-se na penitenciária norte-americana de Draper, estado do Alabama. Nela esperava-se que os presos participassem de atividades de estudo, manutenção, limpeza e ordem no presídio. À medida que se comportavam bem, ganhavam fichas que poderiam ser acumuladas e trocadas por chocolates, TV, jogos, cigarros, cinema etc. Esse método parecia promissor, mas era inovador demais para ser operado dentro da velha cultura administrativa das prisões. Abusos e distorções logo levariam à sua extinção (GEISER, 1977).
Mas nem só o reforço positivo marcou a chegada do Comportamentalismo às prisões. A idéia do condicionamento aversivo, aquele que associa a um comportamento uma resposta desagradável, ganhou frente. Em 1964, na prisão de Somers, estado norte-americano de Connecticut, tentou-se desenvolver aversão a práticas abusivas com crianças em sentenciados pedófilos. Os presos eram colocados de frente a uma tela na qual eram mostradas figuras neutras e figuras de crianças nuas. Todas as vezes que apareciam crianças nuas na tela, os condenados recebiam pequenos choques na parte interna das coxas. Depois de repetidas sessões dessa “terapia”, acreditava-se que, já na ruas, ao se depararem com crianças nuas, esses indivíduos sentiriam, no lugar de excitação sexual, aversão e medo.
A idéia de utilizar métodos condicionantes na recuperação de criminosos sofreu duras críticas ao longo de sua breve história. Parte dessas críticas deveu-se ao sucesso estrondoso do romance A laranja mecânica, de Anthony Burgess (1917-1993). Publicado no início dos anos setenta (e logo levado às telas de cinema) como uma crítica aos sistemas autoritários socialistas, o livro narra a história de um jovem delinqüente, extremamente violento, que concorda em se submeter a um tratamento inovador, cuja função era recondicioná-lo para a vida social. Dopado com substâncias dolorosas e nauseantes e tendo imobilizados o corpo e os olhos, para que não os desviasse da tela, o condenado era submetido a longas sessões cinematográficas. Na medida em que a dor em seu corpo e o enjôo se tornavam insuportáveis, a tela exibia cenas de violência extremada. “Quero vomitar. Me tirem daqui”, implorava o protagonista, o prisioneiro 6655321. Ao que o condutor do tratamento respondia (1972: 117):

“A violência é uma coisa muito horrível. É isto que você está aprendendo. O seu corpo está aprendendo isso... você se sentiu mal porque está melhorando, quando se está com saúde, reage-se à presença do odioso com medo e náusea. Você está ficando bom.”

Após algumas sessões de condicionamento, o prisioneiro 6655321 se tornou aversivo à violência. Mas num grau tal que passou de agressor à vítima inerte. Fosse velho ou criança, qualquer um que quisesse lhe machucar, nele não encontraria capacidade alguma de resistência. Seu corpo aprendera ao limite do patético. Isso indicava a primeira falha do experimento: retirar de tal maneira o potencial de agressividade equivale a inutilizar o ser humano, que precisa manter ao menos suas potencialidades defensivas.
Além disso, o autor (1972:104) apresentava as censuras derivadas de uma ética do livre-arbítrio, expressas pelo personagem capelão da penitenciária: “O que Deus quer? Deus quer a bondade ou a escolha da bondade? O homem que escolhe o mal é talvez de uma certa forma melhor do que aquele a quem a bondade é imposta”.
As advertências do romancista britânico têm sua razão de ser. Só não se pode acreditar que sua apresentação do recondicionamento de delinqüentes representa a única forma possível de utilização desse método. Muitas idéias que guardam em si possibilidades venturosas são expulsas do meio intelectual ao serem tomadas por sua expressão caricatural. Isso certamente ocorreu com as teorias do condicionamento. Não se deseja a conversão em série de criminosos em robôs-humanos, nem é possível fazê-lo. Mas isso não impede de que se utilizem certos aspectos da teoria do condicionamento social para devolver das cadeias à sociedade indivíduos cuja principal fonte de prazer não advenha do exercício da violência sobre seus semelhantes.

Do livro Comportamento social e anti-social humano, de Sandro Sell

(a foto acima é, vocês sabem, do filme Laranja Mecânica, citado no texto. Recomendo que quem ainda não o assistiu - poucos - assista).

2 comentários:

  1. Sandro: há tempo que já ouço falar desse seu livro. Tenho até um "xerox" (sorry!) do capítulo sobre Genética vs. Criação (me foi dado pelo Jualiano "Pipa", seu ex-aluno e meu aluno na pós de Processo Penal. Mas queria ele inteiro. Está esgotado? Pelas amostras publicadas no blog deve ser muito bom.
    Abraço, Carol

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  2. Grande livro! Agradeço ao professor por ter me disponibilizado dois livros seus...

    Abraço

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