domingo, 9 de maio de 2010

Dialética do senhor e do escravo

"TAIS eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: - "Não, perdão meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro não fazia caso e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor! gemia o outro.
Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do verganho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pedir e a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
- É sim, nhonhô.
- Fez-te alguma cousa?
- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa.
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco.
Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, » transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porem, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir... desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto!"

Sim, isso é Machado de Assis, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. Cada vez que releio esse sujeito (em particular essa obra) fico espantado com sua capacidade de análise da vida brasileira, pelo tempo da Proclamação da República. Como quase tudo que nos destaca pelo mundo (futebol, samba, feijoada, ostentosos derrières) esse Machado também tem negritude nas veias. O mulato pobre que nos emparelhou com Dostoiévski, Flaubert ou Sthendal...  Ele não condena textualmente a escravidão, mas de maneira crua mostra alguns de seus efeitos menos óbvios: o negro escravizando o negro (a idéia de inferioridade assumida ao paroxismo!), o negro vergalhando o negro (como uma forma de inverter a dialética do senhor e do escravo), o negro exorcizando no outro, também negro, a violência de que foi vítima... O negro tornando-se branco na pior conotação da palavra e do chicote.

Nota: A imagem acima é de Rugendas, que dá a ela a seguinte explicação:
"Poder-se-ia pensar que num país como o Brasil deve ser quase impossível pegar um negro fugido; é raro, no entanto, que este não seja rapidamente preso. Deve-se esta facilidade à instituição dos capitães-do-mato. São negros livres que gozam de um ordenado fixo e são encarregados de percorrer os distritos de vez em quando, com o fito de prender os negros evadidos e conduzi-los a seus senhores ou, não os conhecendo, à prisão mais próxima. A captura é em seguida anunciada por um cartaz afixado à porta da igreja, e o proprietário, desse modo, logo se encontra. Muitas vezes, esses capitães-do-mato empregam, nas suas buscas grandes cães ensinados."  (Texto de 1824, encontrado em Viagem Pitoresca através do Brasil).


Postado por Sandro Sell   

Um comentário:

  1. É pena que textos como o do Machado foram reduzidos a resumos para vestibular. Reduzido ao nada de uma apostila um gigante como o Machado de Assis se torna patético. Já nesse contexto em que o Sandro o coloca renova seu brilho que ilumina mais de um século de nossas letras.
    Professora Carolina Sá

    ResponderExcluir