sábado, 12 de junho de 2010

A tampa, a panela e a metafísica

"Então a Dona Morte começou a narrar seu encontro em Samarra:
Certa vez um mercador de Bagdá mandou seu servo comprar provisões no mercado. Pouco depois, o servo voltou, branco e trêmulo, e disse: 'Mestre, agora mesmo, quando estava no mercado, fui empurrado por uma mulher no meio da multidão e, ao me virar, vi que fora a Morte quem me empurrara. Ela me olhou e fez um gesto ameaçador. Agora me empreste o seu cavalo, vou cavalgar para bem longe desta cidade, a fim de evitar o meu destino. Irei a Samarra: lá a Morte não me encontrará'. O mercador emprestou-lhe seu cavalo. O servo montou, enfiou as esporas nos flancos do animal e, tão rápido quanto este conseguia galopar, se foi.
Então o mercador foi até o mercado, viu-me de pé no meio da multidão, veio até mim e disse: 'Por que você fez um gesto ameaçador para o meu servo, quando o viu esta manhã?' 'Não era um gesto ameaçador', respondi, 'era só uma reação de surpresa. Fiquei atônita de vê-lo em Bagdá, já que tenho um encontro marcado com ele esta noite, em Samarra'." 

     É comum que quando pensamos em fugir da rotina questionemos os nossos condicionamentos mentais, como o pensar lógico, racional, cauculista e binário do estilo ocidental (isto é, preto-no-branco e materialista). As propostas de fugas da rotina (vendidas em lojas de yoga e seminários de auto-ajuda) prometem trazer um assombro ilógico e místico, uma sensação de vida renascida, de mente desobstruída na proporção em que se aprende a respirar ou dizer o que o espelho quer ouvir (todo dia, pelo menos três vezes, sete dias na semana).
Se achar esses métodos muito repetitivos, você também pode transfigurar-se seguindo jornadas místicas ancestrais, no melhor estilo CVC e auto-superação prét-à-porter. Pegue um folder, um par de tênis, seus problemas e uma mochila e faça o caminho de Santiago de Compostela. Caleje os pés e transporte suas neuras de um lado para o outro (prepare-se para a profundidade singular do que você vai experimentar!). Depois, volte para o seu hotel e escreva um livro sobre isso. Então distribua aos amigos a prova do seu encontro entre você e você mesmo, além de sua solícita  capacidade de seguir as rotinas propostas pelo marketeiros das cidades do caminho de Santiago. (ah, e não esqueça de quitar o carnê da CVC e filiar-se à comunidade do orkut "Eu fiz o caminho..." para provar para todo mundo que você agora faz parte do time dos profundos).

Rotina é caráter, não agenda
Existe uma obsessão em fugir da rotina, como se fosse ela que nos perseguisse, e não o contrário. A rotina não é coisa de agenda, é coisa de caráter, estilo de vida, forma de mapear o espaço para não sofrer sobressaltos.
Mas quem de fato deseja viver o tempo inteiro correndo riscos ou fazendo escolhas? Queremos o máximo de ação nos filmes, mas vida calma e controlada... Por isso nos esforçamos para saber, antecipadamente, tudo o que está ocorrendo a nossa volta, repetimos jeitos de ser, de vestir, de pensar e de falar (times que, se não estão ganhando, pelo menos não estão nos causando especiais problemas...). Queremos saber previamente até o que nossa parceira está pensando. Depois reclamamos de uma vida sem surpresas! Rotinizar é uma estratégia para viver num ambiente conhecido, sem solavancos. Pode até não possibilitar grandes encantamentos, mas também na rotina não haverá lugar para decepções repentinas. (o que não impede que a sua vida, como um todo, lhe decepcione). 
Crônica de uma paixão anunciada
Como é diferente a paixão! Nela nos encantamos com o risco, nos entregamos felizes à insegurança. "Será que ela gosta mesmo de mim?" "Como será que ela de fato é (essa mania platônica de achar que há algo além do que vemos...)?" "Será que ficará ofendida se eu disser tal coisa?" "E se eu omitir essa outra?" "Que perfume, que cor, que lugares a encantarão?" Oh, dúvida cruel, oh, medo de errar querendo acertar, esforçar-me e decepcionar. "Como eu queria poder ler-lhe os pensamentos...." E, na falta da sonhada habilidade, a imaginação vai preenchendo a ausência de informações com as tintas da projeção e das próprias expectativas... (É então que se descobre que ela é com certeza a tampa da sua panela).Quem não convive bem com riscos vai ser rotineiro. Porque a rotina é isso: estratégia de controle neurótico das contigências existenciais. Rotina evita riscos e escolhas. Se a virtude está no meio (e o meio é o mais-ou-menos, a rotina é uma virtude). Pelo menos para os parvos.
O tempo passa. Aos poucos, todas as descobertas são feitas. De tanto querer saber quem ela é, acaba-se descobrindo também o que ela definitivamente não é. E a tampa já não se ajusta. Parece que fomos enganados. Já somos capazes de antecipar palavras, gestos e até pensamentos da pessoa que rotinizamos. Queríamos extrai-lhe toda a verdade, queríamos saber seus mais íntimos segredos, confidenciamos medos, defeitos e livros preferidos. E agora o que tinha de interessante no outro já foi pilhado: já é nosso também. Quisemos domesticá-lo e agora nos ressentimos pela paisagem que não se mexe. Olhamos antecipadamente a página de respostas do almanaque e agora não nos divertimos mais com as advinhações.  
E a frase: "preciso dar um jeito na minha vidinha" volta como a maldição do eterno retorno.
Os riscos do sempre-o-mesmo 
Mas se a rotina fosse apenas um mal, como dizemos, não a traríamos para nós com essa frequência absurda. A rotina também pode ser utilizada de forma conscientemente instrumental: às vezes rotinizamos de forma seletiva partes de nossa existência, com o fim de liberarmos energia para outras áreas da vida que nos encantam de fato. Meu trabalho pode ser rotineiro, mas talvez não meus prazeres (por isso justamente são prazeres).
Não quero trabalhar criativamente para os outros, quero ser rotineiro para eles e encantador para mim próprio.
O problema é que quanto mais rotinizamos seletivamente certas áreas da vida, mas sobra tempo para as crises de sentido (a rotina pode gerar o seu inverso). Quando eu aprendia a dirigir, não ficava dirigindo e pensando na vida: ainda não havia rotinizado a direção, logo dirigia apenas. Hoje cada ida ao trabalho é um tempo enorme para as grandes questões não rotinizáveis: e o sentido da vida vai me rondando enquanto acelero, ligo o rádio, ou espio a galega ali do lado.
O que eu quis dizer com isso tudo? Acho que algo como:
a) O grande paradoxo de nossas vidas é que nos entregamos à rotina para fugir dos riscos (da paixão, da desordem, da incerteza) e, justamente, por isso, arrajamos tempo para encararmos o maior dos riscos: disponibilidade para pensarmos sobre nosso destino.
Ou (para aproveitar a citação do ínicio):
b) Não adianta fugir de Bagdá, se o encontro é em Samarra.
Sandro Sell
(Fico devendo um texto com coerência, esse foi juntado à superbonder - a cabeça tá um caos).



8 comentários:

  1. Sandro: penso que fugimos de um lado para o outro, mas ambos os lados fazem parte da mesma coisa.
    Acostumamo-nos com uma rotina, mas a incerteza de tudo está ali escondidinha atrás do relógio e da agenda.
    Queremos segurança, sim, mas não há como perder de vista que tudo pode se transformar a cada momento.
    Particularmente, adoro minha rotina e a vejo como um consenso comigo mesma, mas, se perco de vista a possibilidade de criação de cada momento, eu me sinto no piloto-automático - ou seja, sinto que não vivi realmente. Acho que esse é o ponto essencial para verificar quando as coisas começam a ir mal em algum setor a vida.

    p.s.: e eu vi coerência no texto :)
    p.s.: já não basta encher o meu blog de post, ainda venho comentar uma redação aqui. sorry =X

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  2. Ainda que perceba-se a junção, o texto ficou intensamente coerente. Parabéns!

    Abraço

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  3. Professor!!! Como eu comentei em outro momento: "todo dia a mesma coisa. QUE BOM!" Eu realmente adoro a minha rotina. Acho importante e benéfica. A simplicidade do cotidiano, quando bem organizada, não nos aprisiona, ao contrario, liberta! É justamente por ter uma rotina bem estrutura que me permito ousar, quando oportuno. Adoro o que escreve, mesmo quando não concordo! Ah! Por que será que o professor associa paixão com desordem? Eu relaciono à intensidade, não necessariamente a riscos e incertezas... Bom, enfim... o importante é ser feliz, cada um no seu quadrado!!!

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  4. A rotina existe para combater o caos. O problema é quando a rotina nos cega para o verdadeiro sentido da vida, na minha opinião, que é refletir sobre a existência. Mas o vazio da existência assusta muitas pessoas, quase todo mundo aliás. Parar para pensar pode ser uma tarefa angustiante.

    Já que fomos condenados à rotina, que pelo menos possamos escolher nossa rotina, privilégio de poucos, infelizmente. Mas, tendo uma rotina prazerosa ou não, acho importante que tenhamos dias em que possamos fugir da rotina ou mudar a rotina. É preciso começar a valorizar o "ócio", descobrir que somos mais do que seres funcionais.

    E a paixão... é realmente o caos. A boa notícia é que ela não dura para sempre. Aliás, segundo especialistas, dura muito pouco... mas o suficiente para fazer estragos. Mas há pessoas que gostam de se embriagar...

    Por fim, não devemos deixar que o medo que nos faz seguir uma vida calculada nos faça também rejeitar aqueles que fazem diferente. Talvez essa mania que a sociedade tem de rejeitar determinados tipos de pessoas esteja diretamente relacionada a essa necessidade de controlar tudo, portanto, eliminando aquele que pode trazer o caos.

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  5. "A rotina existe para combater o caos"??
    Céus, e eu que assimilo o caos no meu cotidiano?

    :D

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  6. Disse bem: "assimilo". Assimilar tem algo de "controle".

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  7. Depende.
    Em que sentido te manifestas?

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