segunda-feira, 21 de junho de 2010

Compreensão e julgamento

Para compreender uma cultura, um grupo social (ou mesmo uma pessoa), é preciso apreender o sentido que seus próprios integrantes dão às suas condutas. Deve-se atentar para a interpretação que eles mesmos elaboram do seu fazer: por que fazem e por que fazem dessa ou daquela maneira.
O ideal, para isso, seria que conseguíssemos entrar num estado de tamanha comunhão pessoal/cultural com o grupo analisado que seus referenciais se tornassem, ao menos provisoriamente, os nossos. É isso que as longas pesquisas de campo de sociólogos – e de antropólogos –, ao conviverem com uma cultura, pretendem obter: deslocar-se de seus pré-conceitos e interpretar o grupo pesquisado a partir do próprio sentido que este dá às suas práticas. Weber falava em criar uma comunidade de destino entre intérprete e interpretado, pois só quem apreende de forma vívida os anseios, os temores e os pressupostos não manifestos de um determinado grupo, pode compreender o sentido de suas práticas. Sem tal comunhão, os outros parecerão sempre estranhos, e nós sempre aptos a corrigi-los.  
Em termos práticos, a comunhão de referenciais entre o pesquisador e o grupo pesquisado será apenas aproximativa. E um bom pesquisador será aquele que, mesmo dando-se conta de que a defasagem entre sua capacidade compreensiva e as nuances culturais do grupo analisado nunca será de todo eliminada, procura ao máximo aproximar-se desse ideal, recolhendo dados e interpretações que diminuam essa distância.
O mesmo ocorre em se tratando da necessidade de compreender não outra cultura, mas um outro ser humano. O famoso psicólogo norte-americano Carl Rogers (1902-1987) lamentava por, freqüentemente, não darmos a importância devida ao processo compreensivo.
Disse Rogers: “atribuo um enorme valor ao fato de poder permitir-me a mim mesmo compreender uma outra pessoa. A forma como traduzi esta afirmação pode parecer-vos estranha. Será necessário permitir a si mesmo compreender outra pessoa? Penso que sim. A nossa primeira reação à maior parte das afirmações que ouvimos dos outros é uma apreciação imediata, é mais um juízo do que uma tentativa de compreensão. Quando alguém exprime um sentimento, uma atitude ou uma opinião, nossa tendência é julgar imediatamente ‘É justo’, ou ‘Que estupidez!’, ‘não tem sentido’, ‘é falso’, ‘não está bem’. Raramente permitimos a nós mesmos compreender precisamente o que significa para essa pessoa o que ela está a dizer. Julgo que essa situação é provocada pelo fato da compreensão implicar um risco. Se me permito a mim mesmo compreender, na realidade, uma outra pessoa [e, acrescentamos, uma outra cultura], é possível que essa compreensão acarrete uma alteração. E todos nós temos medo de mudar. Por isso, como afirmei, não é fácil permitir a si mesmo compreender outra pessoa [ou cultura], penetrar inteiramente, completamente e com simpatia no seu quadro de referência. É mesmo uma coisa muito rara.” – Carl Rogers (1961:29).
Nem sempre as pessoas pesquisadas, por meio do método compreensivo, saberão explicitar, elas mesmas, os motivos que as levam a dedicar-se a essa ou àquela prática social. Mas freqüentemente, o ser interpretado fornece fragmentos de um quebra-cabeça que o profissional da interpretação (o hermeneuta), juntando-os a outros elementos, deverá montar. É nesse sentido que se pode dizer que o interpretado pode, inclusive, aprender sobre si mesmo com o pesquisador. Em outras palavras, acredita-se que o bom hermeneuta (seja um sociólogo, um historiador ou um analista) pode saber mais sobre o sentido de uma conduta praticada do que seu próprio praticante.
Já para os céticos no método compreensivo, o hermeneuta costuma, sem dar-se conta, construir um sentido para o indivíduo/grupo investigado com tal perspicácia narrativa, e argumentativa, que o outro passa a assumir como o verdadeiro sentido de sua conduta aquele inventado pelo hermeneuta. Muitos alegam que foi isso que as pesquisas sobre o tráfico nos morros cariocas na década de 80 fizeram: criaram (pensando estar simplesmente "descobrindo") um sentido romântico, de liderança positiva alternativa, para os chefes do tráficos (em oposição ao descaso estatal) e, assim, deram a tais indivíduos uma legitimação moral para seu agir criminoso.
Polêmicas à parte, nenhum método nas ciências humanas foi tão revolucionário quanto a abordagem compreensiva. Sem ela, ainda acharíamos, por exemplo, que os índios são seres estúpidos e preguiçosos (como muitos ainda acham) e que o General Kuster e os bandeirantes paulistas foram heróis civilizadores.

Prof. Sandro Sell, em Comportamento social e anti-social humano.

4 comentários:

  1. Infelizmente esse método ainda não teve a devida ressonância nas práticas científicas de nossa sociedade (no cotidiano então nem se fala). È só etno ou egocentrismo o que domina a relação com o "outro". Abraço, Carolina Lobo Sá

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  2. Sandro, teremos aula na quinta e na sexta? (did12) Porque na sexta terá jogo!
    Beijos
    Priscilla Brasil

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  3. Saudade de suas aulas... Nelas já debatemos esse texto e você falou que alguém tinha dito que a função do sociólogo era encontrar o exótico no familiar e o familiar no exótico. Nunca me esqueci disso. Vivo me surpreendendo com o estranho no meu mundo e com o familiar que há nos mundos diferentes.
    (E acho bom voce responder a pergunta da moça aí em cima, pois uma garota chamada Priscila BRASIL tem o direito, mais do que qualquer um, de ter folga no dia de jogo da seleção). Te agiliza, então, o guri!
    Bjxoux

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  4. Caríssimo, o problema da distância correta é crucial e creio que não tem solução pronta. Se você olhar em completa comunhão, não conseguirá enxergar muita coisa, pois se isso fosse possível, os próprios pesquisados se auto-explicariam, sem necessidade de você. O próprio Carl Rogers recorria à reformulação empática, ou seja, tentar expressar o que compreendeu de forma distinta da expressão original do sujeito, caso contrário, nada teria a lhe oferecer de útil. Caso o pesquisador olhe do alto dos seus preconceitos, cairá facilmente na falácia Nacirema. Penso que a solução possível, ainda que não sem falhas, está justamente no choque entre visões de mundo, no estranhamento assumido de quem quer diminuir seu preconceito em vez de fingir que o perdeu; em assumir ser um outro que olha de fora e diz: ah, de dentro você enxerga assim? Pois eu de fora vejo assado. E o mundo é assim-assado. Abs

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