sábado, 19 de junho de 2010

Como se fosse a segunda vez...

E se fosse possível corrigir os erros do passado?
    Muitos dizem que queriam ter a experiência de hoje para fazer o conserto do ontem: “Se eu soubesse o que sei agora, as coisas teriam sido diferentes...”.
    É claro que, pelos menos nos grandes equívocos da existência, os erros do passado convertem-se em mais do que simples cicatrizes: tornam-se parte constitutiva do que se é, e, inclusive, a marca mais distinta de nossa personalidade. São os defeitos, os equívocos, as seqüelas do que não deveria ter sido o que efetivamente nos singulariza.
    Só o que é torto distingue e sobressalta.
 (A perfeição é como um móvel novo, com design simétrico em aço escovado e produção em série.   Enquanto as histórias de vida enviesadas são como uma escrivaninha de antiquário, que vale pelos arranhões, vale pelo quanto manchou, entortou e vergou sob o peso dos usos inadequados. Seus danos à forma pura são sua assinatura e seu critério de valor, - a escrivaninha do Saramago, quem vai ficar com ela?)
   Só os erros são realmente nossos. O acerto, as virtudes e a busca da perfeição nos legitimam diante do mundo e dos outros, por nossa capacidade de seguir o conforme-se-manda, mas, quanto mais perfeito se é, menos original também se fica. Deus é perfeito, por isso deve ser imitado, pois a função normativa da perfeição é justamente essa: atrair tudo para o seu padrão tamanho-único. O dia em que pudermos olhar o mundo com os olhos divinos, o dia que pudermos acessar a verdade plena, o dia em que não mais cometermos erros, será também o fim do estilo próprio e da perspectiva de relance que só os imperfeitos podem obter.
(Sem os equívocos da linguagem, como se faria poesia e literatura? Restaria a matemática, a lógica e os memorandos de repartição).
(Sem os equívocos de entendimento, sem situação distorcida de fala, como surgiriam as ironias, os floreios e rodeios, a criação de ideologias e dos mundos paralelos?).
    Falar, para iniciar pelo ato mais constitutivo de nossa imperfeição, é assumir o risco de mal-entendidos: colocamos um sentido em uma palavra, lançamo-la e o interlocutor colhe outro. E não raras vezes, somos perseguidos, ou adorados, por esses franksteins lingüísticos acerca dos quais não temos controle. (“Não era bem isso que eu quis dizer.” – Conforme-se: entre o dito e o captado há montanhas de subjetividades que impedem a exata transmissão da mensagem).

O que a Deus é negado
    Deus amaldiçoa o pecador porque este não reflete sua perfeição (Deus precisa de muitos espelhos). Mas, no fundo, parece haver uma divina atração por nossa singularidade degenerada. Afinal, quem tocava mais de perto o coração de Cristo? Anjos? Claro que não. Seus amigos eram uma súcia do que havia de mais deplorável no seu tempo: ladrões arrependidos, pescadores ignorantes, prostitutas decadentes e beberrões inveterados. Afora João Batista – cujo contato com Jesus foi mínimo – nosso Salvador não perdia tempo com os “sãos”, abraçava os caídos, e fazia de tudo para tê-los em sua companhia.
    Nossos defeitos: essa é a cobiça divina, - por ser a única coisa que falta para que Nele não falte nada. São os Seus limites, por isso nos amaldiçoa: não sabe o que é remorso e assim não pode saber o que é reconciliação, não sabe o que é perder-se, logo Lhe falta a noção do que seja se encontrar; não sabe o que é sofrer, portanto, não pode nos ajudar (e por isso pragueja, castiga e ameaça).
(Ninguém deveria ser culpado pela perfeição alheia).
    Deliciar-se de excessos, curtir o que de bom há na carne, arriscar-se por pouco, rir dos próprios erros (e dos tombos alheios), criar ilusões compartilhadas: podem não ser um ideal bonito, mas representam um libertário afastar-se do caminho da escola, uma fuga do grupo de escoteiros, a vingança contra o projeto do papai de fazer-nos coroinhas. E garotos perfeitos nunca terão nada a contar que não sejam notas adequadas, posturas adequadas, relações convenientes: vida de mentirinha.
   É por isso que Mark Twain disse que preferia o Céu pelo clima e o inferno pela companhia. Por isso que elas sonham com um homem certinho enquanto se apaixonam pelo incorrigível, enquanto eles largam as boazinhas em busca das atrevidas menos virtuosas. Também é por isso que o cachorro rejeita a ração, os pirralhos fogem do banho, nosso colesterol sobe e a grama vive sendo pisada.
    Errar é exclusivamente humano, por isso os perfeitos nos invejam.

Reconciliar-se com os inocentes
   Bom, melhor não terminar esse texto assim: afrontando autoridades e pregando um hedonismo rasteiro. Pode haver inocentes lendo, e tais pessoas esperam que de tudo possa ser extraído algo edificante. Melhor não os decepcionar. Pois então vamos lá: de volta ao início do texto: seria possível corrigir os erros do passado valendo-se da prudência do presente?
   Sim. Se por isso entendermos não um apagar do que já foi, mas uma re-significação do erro numa positividade presente. Isso é o que fazemos o tempo inteiro na história: imagine a indignação do povo pobre da França tendo que arcar com os custos do palácio de Versailles ou a agonia dos escravos egípcios tendo que construir as faraônicas pirâmides: duas obras criminosas, fruto da exploração humana mais aviltante e de crenças duvidosas sobre a natureza apoteótica do poder do soberano. Mas hoje o que são? Patrimônios da humanidade: vemo-las como corpos estéticos e não como monumento erigido à exploração do homem pelo homem.
(Se levássemos a coerência moral e histórica a ferro e fogo deveríamos implodir o Coliseu, como se fez com a estátua de Sadan e de Lênin).
   Não se pode reviver o passado (um óbvio difícil de praticar), mas se podem converter os defeitos pretéritos no interessante atual (as melhores histórias são sempre contadas pelos piores personagens). Pode-se pegar a ruína do ontem e colocar-se na moldura do hoje como prova de que os erros feitos não podem ser apagados, mas re-enquadrados numa outra gestalt, num outro contexto em que, por alteração da relação figura e fundo, o que foi um vexame torna-se um patrimônio cognitivo consolidado.
(O que não nos mata só nos fortalece, senhor filósofo, se re-significarmos os ferimentos: caso contrário, o que não nos mata, nos traumatiza, nos lança no terror da fobia de reencontrar o velho fantasma).
   E sobre o futuro? O psiquiatra Viktor Frankl, fundador da logoterapia, e sobrevivente heróico dos campos de concentração, diz que na busca da singular tarefa de dar sentido à vida, de aproveitar melhor cada momento deveríamos seguir o seguinte imperativo:
“Viva como se você estivesse vivendo a segunda vez, e como se estivesse agido tão erradamente na primeira vez quanto está prestes a agir agora.”
  Em outras palavras, só vivemos cada situação uma única vez como presente, melhor então lidar com ela sem amadorismo, isto é presumindo que nossos velhos esquemas (erros do passado) querem roubar de nós as possibilidades positivas do presente. Uma coisa é estar aberto ao erro original (feito por nossa humanidade e gosto por descobertas), outra é cristalizar-se em velhos esquemas mentais que sempre transformam o futuro numa amarga repetição do passado.

Em síntese: 1. Defeitos passados são marcas de personalidade positivas, quando aceitos como parte constitutiva de nossa biografia singular (e por isso existencial e esteticamente consistentes) e re-significados pela nossa perspectiva presente; 2. Vida em virtuosismo pleno é não-vida, pelo menos na forma humana como até hoje a temos conhecido; 3. Podemos usar a perspectiva do futuro para analisar o presente, e agir com desenvoltura calculada, a fim de manejarmos impulsividades que no congelem em velhos erros, impedindo-nos de manifestar o traço mais apreciável dos seres humanos: errar com originalidade e com as melhores intenções.


Sandro sell

7 comentários:

  1. "errar com originalidade e com as melhores intenções." Muito bom, é sempre muito bom ler o que vc escreve, o que nos leva sempre a inúmeras perguntas e inquietações...

    Bjus!

    ResponderExcluir
  2. Como alguém pode ter tantas idéias originais? Onde se aprende a escrever assim?
    Beijão, Fabi Muller ("garota enxaqueca").

    ResponderExcluir
  3. "Pode-se pegar a ruína do ontem e colocar-se na moldura do hoje como prova de que os erros feitos não podem ser apagados, mas re-enquadrados numa outra gestalt, num outro contexto em que, por alteração da relação figura e fundo, o que foi um vexame torna-se um patrimônio cognitivo consolidado."

    Muito bom o uso que você faz da Psicologia nos seus discursos...

    Abraço

    ResponderExcluir
  4. Professor, querido!!! "Pode haver inocentes lendo, e tais pessoas esperam que de tudo possa ser extraído algo edificante." (????) Acho que dessa vez o "inocente" foi você. Não conhece seus seguidores? O discurso pessimista em que a humanidade aparece sempre como degenerada, mesquinha, pequena... é isso que nos atrai e fascina. Não esperamos ouvir de você que tudo é lindo e maravilhoso, pois isso muitos já dizem, fingindo acreditar. Queremos o diferente, com cicatrizes e imperfeições! Excelente texto, como sempre. Grande beijo!

    ResponderExcluir
  5. Vou seguir o seu conselho,passarei a noite ressignificando meus delitos passados em estilo presente e charme futuro.
    bjxs

    ResponderExcluir
  6. genial.
    adoro seus textos, professor :D

    ResponderExcluir
  7. Considerar um ato errôneo é algo tão subjetivo... Todo ser tem a capacidade de se auto criminalizar e inclusive se auto penalizar. Mas acredito que isto seja um ato nobre, nos faz repensar em nossas vivências e avaliar o que realmente faz sentido em nossas vidas. O certo o errado, o verdadeiro o falso, tudo são avaliações humanas, e consequentemente todos avaliam com base nas suas vivências, com suas qualidades e defeitos, julgar o próximo é muito simples, é fácil determinar ao outro o que é certo ou o que é errado, mas na hora de por em prática em nossa vida todos os conflitos transparecem... Mas a vida é isto, um grande encontro com as incertezas. Ser feliz é um objetivo comum à todos, mas o que me faz feliz nem sempre é compreendido de forma ampla, completo dizendo que isto acontece com todos, todos vivem em algum momento conflitos e desejos que não são compreendidos, mas de que vale viver se não podemos viver em busca daquilo que nos faz feliz. Como diria o grande Sartre "O homem não é nada mais do que aquilo que faz de si mesmo", com isto interpreto que ser feliz e realizar nossos desejos deve ser nosso grande objetivo, mas nunca devemos esquecer que somos as únicas pessoas responsáveis pelas consequencias de nossas escolhas.

    ResponderExcluir