Shakespeare dizia que mesmo um mendigo tem algo de supérfluo – uma garrafinha de estimação, um barbante em volta do pescoço, uma anel de lata que seja - pois sem isso ele se tornaria um animal. Será que é o supérfluo que nos humaniza? Com efeito, os animais, por si mesmos, não carregam nada: eles têm seus corpos e nada mais. Não possuem a noção de vida estilizada, de existência tornada singular pelo que se possui, coisa tipicamente humana: “Lá vai a moça do piercing”, “Lá vai o rapaz da BMW”, “Lá vai o povo da tatuagem”. Em nossa espécie ter e ser estão intrinsecamente ligados. É mesmo difícil dizer quem se é deixando de dizer o que se tem (propriedades, emprego, diplomas, relações, filhos...).
Na ausência absoluta de maquiagens, posses ou poses a pessoa vai perdendo pouco a pouco sua especificidade, vai se animalizando. Repare como os náufragos são representados nos filmes: cobertos de pelos e desprovidos de modos, quase macacos. O excesso de pelos justifica-se pela ausência de lâminas, assim como a falta de modos se justifica pela ausência de semelhantes próximos. Pois é essa presença – o olhar dos outros - que garante aquela dose de artificialismo diário – as tais normas de etiqueta – que diferenciam, por exemplo, nosso civilizado jantar do comer dos porcos. Haja disfarces, discrição e pedidos de licença para comermos “como gente!”.
Sim, eu estou defendendo que, para nós humanos, a artificialidade é essencial, sendo mesmo nosso estado mais adequado. E, por paradoxal que possa parecer, é justamente quando queremos nos aproximar de uma suposta “naturalidade” que nos artificializamos ao extremo. Veja o que se passa quando as moças do momento aceitam posar nuas em revistas: as manchetes dirão que, finalmente, teremos a chance de vê-las “ao natural”. Mas mesmo o mais desinformado de nós sabe que esse natural é artificialidade pura, onde se controla tudo, desde quantas gotinhas de suor devem aparecer na foto da ginasta nua, até quanto de quadril deve ser retirado da atriz recém-saída da gravidez. Em suma, a celulitezinha da modelo deverá ser gentilmente apagada para não atrapalhar a “naturalidade” de suas formas em estado puro (aquela que jamais existiu).
Isso ocorre também com as "comidas naturais", produzidas com métodos artificiais em face da economia de escala pós Segunda-Guerra, e por isso mesmo, um luxo destinado a poucos. Só quem possui salários artificiais em face da média dos trabalhadores pode frequentar as prateleiras que ostentam os rótulos: orgânicos, natural, sem aditivos...
O natural é assim, apenas, uma forma de disfarçar o supérfluo indispensável para que as coisas pareçam boas. E é o supérfluo –repito - que nos singulariza. O uniforme da moça do McDonalds é sempre o mesmo, mas a lateral do nariz furada, a tatuagem na nuca, o perfume inspirador ou o brinco estiloso a salvam da padronização plena. Ela é única porque se fez supérflua, porque trás consigo coisas que poderia não trazer, - mas, como todos sabem, é mais fácil que ela esqueça seu crachá, que, de fato, nada diz de interessante sobre ela, do que os brincos, com os quais expressa que há uma vida diferenciada – e por isso interessante - por trás do balcão, e que ela não é apenas uma McPessoa.
E a tal da beleza interior? As características distintintivas da personalidade são fundamentais (por óbvio) mas não demarcam território de pronto, não sinalizam à distância, não estilizam no silêncio, nem são a primeira impressão. Somos seres territoriais, que pretendem ser compreendidos antes de emitir qualquer grunhido. Por isso, deixamos que as coisas (ou a ausência delas) fale por nós. "Lá vai a garota que não dá a mínima para a moda! Ela se garante...", é uma frase esperada por aquela que se diferenciou pelo que dispensa. Dizem, sobre isso, que Diógenes (o que vivia em uma barrica) começou provocativamente a pular na cama de Platão enquanto dizia: "Estou pulando no orgulho de Platão". Ao que este respondeu: "Mas com um orgulho maior ainda!".
Mesmo o anti-consumista estiliza-se no supérfluo. E a maior parte das humildades são feitas como uma afronta ostensiva contra outras espécie de orgulho.
Abóboras
Alguns sustentam que nosso estado natural é aquele para o qual tendemos quando não nos sentimos vigiados (pelos pais, patrões, professores, namorada, ou vizinhos, não importa). O natural não exigiria esforço: a ele nos dirigiríamos por pura inércia. Siga um mês essa regra e a preguiça, a gula, o desleixo e os impulsos sexuais inconseqüentes detonarão sua vidinha artificialmente controlada (a não ser que o artificial já tenha se feito carne em você e sua inércia seja disciplinada - leia Foucault). Em “estado natural”, não somos grande coisa. É por isso que nossas irmãs sempre casam com os irmãos das outras na ilusão de que eles serão de fato muito diferentes daquele “porco, malandro, malcriado” com que elas conviveram em casa. Coitadinhas, ao casar descobrirão que namorado legal não passa de uma versão artificializada do maninho asqueroso – natural -, cujo modelo de pessoa as moças não queriam “nem pintado de ouro”.
Ser artificial, - isto é, dissimulador e amaneirado, - e possuir supérfluos é de nossa história cultural; não direi que é de nossa natureza, mas bem que poderia, já que sem os maneirismos culturais não existiria humanidade. Como bem disse o antropólogo C. Geertz: se tirassem dos humanos o que lhes é cultural (aprendido, artificial) eles não regrediriam aos macacos: eles se transformariam em abóboras. A sentença do célebre pensador é fértil em conclusões agrícolas: entregues unicamente à sua natureza biológica os humanos não se animalizam, vegetalizam-se. Faz sentido: um macaco não é simplesmente um humano em estado de náufrago, ele é um ser inteligente, hábil e muitíssimo bem adaptado às árvores e bananas da ilha deserta; já o ser humano nesta mesma ilha viraria uma criatura patética, atormentada e cada vez mais próxima da insanidade, - a ponto de, na interpretação cinematográfica de Tom Hanks, doar seu sangue a uma bola, na esperança de torná-la alguém, um outro humano.
Que outro animal seria capaz de tamanha estupidez? Só mesmo nós, os humanos e, quem sabe, nossos primos, as abóboras...
(continua...)
Sandro Sell
Céus: mais um bastidor que tu me abres à descoberta. Nem tenho o que falar, mas mais a pensar - isso se eu sobreviver depois dessa!
ResponderExcluirE eu nem gosto de abóbora :(
Surpreendente, Sandro!
Bjão
Muito bom!
ResponderExcluirE esperando pela continuação...
Abraço
"É por isso que nossas irmãs sempre casam com os irmãos das outras na ilusão de que eles serão de fato muito diferentes daquele “porco, malandro, malcriado” com que elas conviveram em casa. Coitadinhas, ao casar descobrirão que namorado legal não passa de uma versão artificializada do maninho asqueroso – natural -, cujo modelo de pessoa as moças não queriam “nem pintado de ouro”.
ResponderExcluirRealmente uma lição de vida que se aprende com o Sandro!!
Muito Bom!!
Muito bom o texto!!!
ResponderExcluirEsperando a continuacao...
Professor!
ResponderExcluirParabéns por suar "artificialidade"! Sua habilidade em lidar com situações de potencial conflito é admirável. Nossa turma não é nada fácil. Existem vários focos de incêncio e somente alguém com absurda serenidade e segurança consegue tolerar tanta arrogância (irmã-gêmea da estupidez) e manter o bom humor. Mas o semestre está acabando e a experiência ensina que, ao fim de cada fase, sempre ocorre uma seleção natural. No mais, as aulas são boas e sempre estamos aprendendo, tecnicamente ou de forma menos sitematizada. Mas, como diz um outro professor bem querido, vai dar certo!