quarta-feira, 21 de abril de 2010

Você sabe quem eu sou?



Gravações são recortes de um momento. Um momento tem seu contexto, talvez agravador do fato, talvez até excludente de qualquer conduta delituosa ou inapropriada. Mas sempre explicativo. A gravação recente de um vídeo, divulgado pela RBS, em que uma desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina usa uma variação da famosa frase "Você sabe com quem está falando!" não fala por si mesma, mas permite algumas reflexões:
a) uma autoridade diante de um ato supostamamente abusivo de um policial deve defender-se lembrando quem é? Ou deveria recorrer aos canais legais como todo mundo? Não devem ser elas - as autoridades - as primeiras a acreditar nos procedimentos que exigem dos outros?
b) uma autoridade diante de um ato agora supostamente legal de um policial pode exigir tratamento a partir de quem é, e não do que fez? Não estamos mais no tempo das Ordenações Filiphinas em que o que era dever do plebeu era Direito do nobre. 
Se houve as prévias agressões à desembargadora de que se deduz da nota da AMC (reproduzida abaixo)espera-se que levem o caso a frente e mostrem provas, pois seria bom (além de um dever) coibir o suposto abuso policial. Mas se não há essas tais agressões ou elas não podem ser provadas, questiona-se a defesa intuitiva de alguém simplesmente por ser autoridade - sobretudo por uma associação de magistrados, os senhores das provas e do due process of law!.
Mas há outra base de interpretação do episódio também. Naquele momento, ela era "mãe" (se fosse "pai" não seria diferente), e mães - incluindo a minha - costumam ser emotivas, superprotetoras e passionais diante de possíveis agressões ou contrariedades legais a seus filhos. Isso é presumido. Tanto assim o é que nenhum juiz é autorizado a julgar (a agir como "profissional")  os seus próprios filhos. Nesse caso, compreender-se-ia o destempero momentâneo ("mãe é mãe"), mas não a nota da associação, que não é da família.
Pelo recorte do vídeo a conduta da magistrada foi muito, digamos, inadequada.
Agora, pondere-se, a favor do contexto omitido, que a polícia catarinense não costuma ser, digamos, muito gentil no seu trato com o cidadão. Invoque algum direito diante de policiais em blitz e eles, com as exceções de sempre, riem de sua cara e se tornam ainda mais petulantes. Peça providências legais de modo mais incisivo em uma delegacia e os funcionários-autoridades já querem tipificar desobediência. É a cultura da voz de prisão, do berro e da falta de procedimentos.
Esse ethos de autoritarismo cotidiano é que tem que ser rompido. Por todos, a começar pelos que ostentam os símbolos do poder que, não custa repetir, lhes foi delegado pela população por meio de suas leis. E melhor será no dia em que o policial puder fazer o que é de direito (e nada além disso!), e o cidadão (qualquer que seja ele) aceite o ônus de viver sob leis. Quanto a quem se é? Isso guarde-se para o currículo. Fica mais apropriado.

Confira a íntegra da nota da AMC, sobre o caso:
"A Associação dos Magistrados Catarinenses (AMC), entidade que representa os juízes e desembargadores de Santa Catarina, vem a público prestar alguns esclarecimentos sobre o episódio envolvendo a desembargadora Rejane Andersen.
De acordo com o relato da própria magistrada, cumpre esclarecer que a versão apresentada nos meios de comunicação não condiz plenamente com a verdade dos fatos, uma vez que omite as provocações e ameaças feitas pelos policiais militares, as quais acabaram por obrigar a referida magistrada a exigir respeito não só em razão do cargo que exerce, mas, sobretudo, pela sua condição de cidadã e profunda conhecedora dos seus direitos e garantias.
A versão apresentada à imprensa não mostra, por exemplo, que a desembargadora Rejane Andersen foi tratada pelos policiais militares de forma ríspida a partir do momento em que começa a questionar de maneira educada acerca da necessidade de manter todos naquela situação, ou seja, se havia possibilidade liberar todos os envolvidos antes da chegada do caminhão-guincho.
A abordagem dos policiais sobre a magistrada mostra-se ainda mais agressiva quando a desembargadora Rejane Anderesen se insurge contra a filmagem feita por um dos policiais.
A partir daí, ante a ameaça arbitrária e descabida de uso de algemas — instrumento que tem nos dias de hoje sua utilidade justificada somente em casos em que o agente oferece risco iminente à ordem pública —, não restou outra alternativa à desembargadora Rejane Andersen que não fosse a de evidenciar a sua condição de magistrada.
Não houve abuso de autoridade por parte da referida magistrada. O que houve, repise-se, foi a exigência, por parte da desembargadora Rejane Andersen, de respeito a sua condição de magistrada e cidadã.
Faz-se necessário, ainda, registrar que a desembargadora Rejane Andersen possui uma longa folha de relevantes serviços prestados à Justiça catarinense, merecendo não só de seus colegas, mas também de toda a sociedade catarinense, a justa atenção aos seus argumentos sobre o caso. À AMC, cumpre prestar os devidos esclarecimentos a fim de que seja restabelecida a verdade sobre o caso.
Juiz Paulo Ricardo Bruschi
Presidente da AMC"
Postado pelo Sandro Sell 

13 comentários:

  1. Professor, acabei de ler seu texto sobre o vídeo, me de a impressão que o Sr. foi muito compreensível com o erro da juíza.

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  2. Prezado: o objetivo desse blog não é o de condenar pessoas ou julgá-las. É ao contrário, o de pedir cautela, invocar direitos e sugerir prudência, mas também providêmcias (tudo isso foi explicitado na postagem). Não agi diferentemente diante do caso Nardoni, nem de qualquer outro acusado. Sempre me insurgi contra condenações intuitivas ou indiciárias e sempre critiquei a conduta de imprensa, delegados, juizes ou promotores que se filiam a tal postura. Por acaso já me viram ensinando em sala que se há uma filmagem do evento o contraditório não mais é possível? Sempre acreditei que a verdade não se confunde necessariamente com algumas versões que nos chegam dela. O caso em tela sugere cautela, revisão de posturas e providências das autoridades competentes, inclusive uma análise imparcial do CNJ - mais adequada do que a de interrogar juízes por ter prendido banqueiros ou concedido progressão de regime dentro das possibilidades legais... Mas me somar ao coro condenatório dos Nardoni, da Desembargadora, do policial ou do garoto que sai com um chocolate das lojas Americanas, ah, isso eu não faço não. Não é da minha função e muito menos da minha pessoal inclinação.
    Com todo respeito que você, por me dar a honra da leitura, merece, Prof. Sandro Sell

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  3. Parabéns, Sandro, é essa postura que revela o verdadeiro jurista!
    Professora Carolina Lobo

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  4. A nota da AMC é que foi destemperada. deviam ter se calado e aguardado as investigações, juízes não tem esse dever?
    Célio Vieira

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  5. Eu odeio essa frase: "Voce sabe quem eu sou?". A vontade que tenho é de responder: "Não, mas e dai? Saber vai fazer alguma diferença?"

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  6. Essa famosa (idiota) frase começa já nas academias.
    Duvidam?

    Perguntem para as secreterias do ESAJ (cesusc) quantas vezes elas ouvem isso dos acadêmicos.

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  7. Essa famosa (idiota) frase começa já nas academias.
    Duvidam?

    Perguntem para as secretarias do ESAJ (Cesusc) quantas vezes elas ouvem isso dos acadêmicos.

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  8. É só o que se houve nessa cidade, sofre-se aqui de autoritarite crônica.

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  9. Ai! onde se lê no comentário acima "houve" leia-se "ouve" que eu sou anônimo mas burro nem tanto.

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  10. Você sabe com quem está falando?

    Outra pergunta que remete à divagação filosófica, por vezes acadêmica - fruto, e ainda há quem duvide, do Antigo Regime de Portugal e sua colonização confusa.

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  11. Quando surge esta pergunta "você sabe com que está falando?" A resposta mais indicada poderia ser "não, mas caso você esteja confuso, sem saber quem você é, passando por problemas de identidade, não se desespere, farei o possível para auxilia-lo com esta questão".
    Existem muitas pessoas perdidas por ai, sem saber quem são, o que devem falar, quais são seus direitos, seus deveres..... Cabe aos mais esclarecidos orienta-los.
    Ingrid Vier

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  12. Foi a análise mais ponderada do constrangedor episódio. Não culpou, não isentou. Analisou apenas, como cabe a um respeitado professor de Direito. Pertenço à mesma instituição da magistrada citada e posso garantir que tal comportamento é a exceção extremada de uma classe que tem honrado o Judiciário nacional.
    Saudações, J.P.L.

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  13. A voz do povo é a voz de Deus.
    Aqui vai uma material complementar para tirar algumas duvidas que surgem.
    http://noticias.r7.com/videos/em-santa-catarina-uma-desembargadora-tenta-dar-carteirada-em-uma-blitz/idmedia/726957a4b6404aa00a6cc841363fd386.html
    Boa reflexão.

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