quinta-feira, 8 de abril de 2010

Haiti, Olympe de Gouges e a inversão ideológica dos direitos humanos.

O mundo todo se mobilizou para ajudar as vítimas do terremoto que matou mais de duzentos mil haitianos no início desse ano.   Na medida em que a mobilização humanitária ia crescendo, crescia também o interesse de todos pela história desse povo sofrido. Tomamos conhecimento que o Haiti foi o maior produtor mundial de açúcar e era uma das mais prósperas colônias do ocidente. Toda essa prosperidade, contudo, era baseada na forma de produção escravagista.  Em 1791 a população negra haitiana promoveu a primeira e mais exitosa revolução de escravos das Américas. Liderados por Toussaint L’Ouverture o Haiti proclamou a independência,  forçando o governo jacobino a abolir a escravatura nas colônias francesas. A bandeira de luta pela independência desse pequeno país caribenho era a mesma utilizada pelos revolucionários franceses de 1789, ou seja, liberdade, igualdade e fraternidade. Para o governo da metrópole, entretanto, a universalidade dos valores consagrados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão não eram assim tão universais. Em 1802 Napoleão desembarcou no Haiti e promoveu uma verdadeira chacina, que resultou na prisão e degredo de L’Ouverture. Entretanto, a acirrada resistência do povo haitiano impôs a derrota do exercito invasor e finalmente em 1804, o Haiti declarou a sua independência. A “vitória de Pirro” custou caro para a economia do Haiti que até a catástrofe de 12 de janeiro de 2010 continuava sendo um dos países mais pobres do mundo.

Os fatos envolvendo a remota colônia caribenha influenciaram Olympe de Gouges, jornalista e escritora que polemizou acirradamente com os líderes revolucionários de 1789. Olympe de Gouges escreveu uma peça de teatro intitulada L’Esclavage des Nègres, um libelo anti-escravagista. Olympe de Gouges, entretanto, alcançou notoriedade com a sua defesa intransigente dos direitos das mulheres. Ironizando com a Declaração de 1791, Olympe de Gouges escreveu A Declaração dos Direitos da Mulher e das Cidadãs<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]-->.  O conteúdo da obra consistia em reivindicar que os efeitos libertadores da revolução burguesa também incluíssem as mulheres. Outra vez a universalidade dos Direitos do Homem foi negada pela classe hegemônica e Olympe de Gouge foi guilhotinada em novembro de 1793.
Avançando mais na história, lancemos nossas atenções para a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Ainda tentando compreender as causas e as conseqüências da 2ª Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas declarou que todos os homens, pelo simples fato de terem nascido, são sujeitos de direitos que devem ser reconhecidos, respeitados e garantidos pelos Estados-membros. Ocorre que o documento mais importante produzido pela ONU deixou intacto o sistema de colonização vigorante à época de sua publicação. Partindo do pressuposto de que a relação de dominação colonial, ancorada no imperialismo dos países centrais, era fonte inesgotável de desrespeito às sociedades colonizadas, fica fácil compreender a sensação sentida por todos de que - como salientou Joaquin Herrera Flores - a história dos direitos humanos é a história do seu descumprimento<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]-->.
Os três momentos históricos revelam uma dinâmica social contraditória na qual um determinado coletivo assume o poder, projeta seus valores como valores universais e simultaneamente restringe a aplicação desses valores em proveito dos setores hegemônicos da sociedade, excluindo outros coletivos do entorno.  É importante dizer que tal contradição se manifesta na prática concreta de violência, mas também repercute no campo discursivo, uma vez que as formas de exclusão social necessitam de justificação ideológica com a finalidade de se legitimar pela adesão intelectual do maior número de pessoas possível. Esse processo de redefinição/apropriação discursiva acerca de determinados valores com a finalidade de legitimar o exercício do poder de quem o enuncia pode ser chamado de inversão ideológica.
Especificamente no campo do discurso sobre os direitos humanos, David Sánchez Rubio também define inversão ideológica como o mecanismo a partir do qual se justifica a utilização de determinados direitos humanos com a finalidade de violar outros<!--[if !supportFootnotes]-->[3]<!--[endif]-->. Sanchez Rubio fornece mais três exemplos de inversão ideológica: a política de imigração aplicada nos países centrais, o privilégio concedido aos direitos civis e políticos em detrimento dos direitos sociais e as chamadas “intervenções humanitárias” <!--[if !supportFootnotes]-->[4]<!--[endif]-->. Pelo primeiro exemplo, Sanchéz Rubio se refere à contradição dos países centrais que em determinado momento de suas histórias até mesmo incentivaram o ingresso de imigrantes em seus territórios pela necessidade de absorver mão de obra para o setor produtivo e agora fecham as portas de suas fronteiras sob o argumento de que o setor produtivo não mais comporta o excedente de trabalhadores. Sánchez Rubio denúncia que a subordinação aos interesses econômicos do capital impõe a inversão ideológica privilegiando o direito de circulação de mercadorias em detrimento do direito à circulação de pessoas. O segundo exemplo fornecido por Sanchez Rubio se refere ao discurso que pretende conferir maior justiciabilidade aos direitos civis e políticos dos que aos direitos sociais, sob o falso argumento de que a garantia dos primeiros onera menos os cofres públicos. De modo geral, a retórica que sustenta esse argumento sempre situa os direitos sociais na condição de direitos programáticos, limitados pela assim denominada reserva do possível <!--[if !supportFootnotes]-->[5]<!--[endif]-->. O terceiro e último exemplo é tomado das recentes experiências de invasão armada de um país a pretexto de defender os direitos humanos de minorias étnicas oprimidas. Nesse caso, a defesa das referidas minorias provoca como “efeito colateral” a morte de centenas ou milhares de cidadãos pertencentes à maioria étnica do país agredido<!--[if !supportFootnotes]-->[6]<!--[endif]-->
A despeito de tais inversões ideológicas promovidas pelos setores hegemônicos, a universalização dos direitos humanos é de fundamental importância porque refletem o processo de elevação da dignidade humana à categoria de consenso global.  Fundamentado no pensamento de Lukacs<!--[if !supportFootnotes]-->[7]<!--[endif]--> e no da Escola de Budapeste<!--[if !supportFootnotes]-->[8]<!--[endif]-->, Joaquin Herrera Flores<!--[if !supportFootnotes]-->[9]<!--[endif]--> explica que a Declaração de 1948 e o corpo legislativo que envolve os principais tratados de direitos humanos devem ser considerados como resultado da objetivação das preferências sociais generalizáveis, ou seja, os valores que embasam os direitos humanos devem ser entendidos como o resultado de um consenso em torno de práticas sociais e políticas que geram, em determinado momento histórico, garantias concretas de defesa da dignidade humana com reconhecimento do maior número de coletivos possível (pessoas, corporações, movimentos sociais, Organizações não governamentais, Estados e Organismos Multilaterais). Tal consenso é forjado no palco de lutas sociais para onde esses mesmos valores devem retornar num processo dialético, sempre na direção da ampliação/aprofundamento dos direitos e da inclusão social sem restrições. Para que os direitos humanos se mantenham sempre como instrumento e referência de luta pela dignidade humana, Herrera Flores propõe a estratégia de recuperação da ação política pela via do empoderamento<!--[if !supportFootnotes]-->[10]<!--[endif]--> dos setores excluídos e a produção de uma filosofia impura dos direitos a partir da qual o ordenamento jurídico seja sempre “contaminado” de contexto (situado e cotejado com a realidade social). O engajamento nessa perspectiva consiste numa racionalidade de resistência e somente a partir dela será possível barrar todas as formas de inversão ideológica, quer seja a de conferir uma dimensão limitada e restritiva dos direitos humanos ou, o que é pior, de utilizá-los para a violação de outros direitos.   

Por: André Luiz Machado
(Juiz do Trabalho Substituto;
Mestre em Ciência Política pela UFPE; M estre em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidad Pablo de Olavide, Sevilha)


Postagem: Prof. Ruben Rockenbach
<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]--> HERRERA FLORES, Joaquin. Los derechos humanos como productos culturales. Critica del humanismo abstrato. Madrid: Catarata, 2005.
<!--[if !supportFootnotes]-->[3]<!--[endif]--> SANCHÉZ RUBIO, David. Universalismo de confluência, in HERRERA FLORES, Joaquin (org). El vuelo de Anteo. Derechos humanos y crítica de La razón liberal. Desclée de Brouwer: Bilbao, 2000.
<!--[if !supportFootnotes]-->[4]<!--[endif]--> Idem. Reflexiones e (im)precisiones en torno a La intervención humanitaria y derechos humanos, in SANCHÉZ RUBIO, David, HERRERA FLORES, Joaquín e CARVALHO, Salo (org). Direitos humanos e globalização: fundamentos e possibilidades desde a Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
<!--[if !supportFootnotes]-->[5]<!--[endif]--> Cf. sobre o tema da justiciabilidade dos direitos sociais os seguintes trabalhos: PISARELLO, Gerardo. Los derechos sociales y sus garantias. Elementos para una reconstrucción. Madrid: Editorial Trotta, 2007; ABRAMOVICH, Victor e COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Editorial Trotta, 2004 e ABRAMOVICH, Victor. Líneas de trabajo en derechos econômicos, sociales e culturales: Herramientas y aliados, in Revista Internacional de derechos humanos (Edición en Español). São Paulo: Rede Universitária de Direitos Humanos, 2005, ano 2, número 2.
<!--[if !supportFootnotes]-->[6]<!--[endif]--> Aqui o exemplo mais estudado e comentado tem sido o ataque da OTAN a antiga Yoguslávia em 1999, supostamente em defesa da minoria albanesa em Kosovo. O discurso utilizado pelo governo norte-americano para invadir e ocupar o Iraque apresentou como uma das justificativas a agressão de Saddam Hussein a população curda.
<!--[if !supportFootnotes]-->[7]<!--[endif]--> O pensamento de Lukács, como se sabe, ganhou notoriedade com História e Consciência de Classe, obra da sua primeira fase marxista, publicada em 1923. O livro consiste numa coletânea de textos produzidos pelo filósofo húngaro depois que aderiu ao marxismo em 1918. Nele, Lukács utiliza categorias filosóficas do jovem Marx com a finalidade de apresentar uma alternativa mais revolucionária e engajada em relação ao determinismo economicista da Segunda Internacional.
<!--[if !supportFootnotes]-->[8]<!--[endif]--> Javier Amadeo descreve assim a Escola de Budapest: “Alunos, discípulos e colegas do velho Lukács continuaram com o interesse o projeto teórico do seu professor: Agnes Heller, Ferenc Fehér, György Márkus e István Mészaros, críticos do regime comunista, foram, em diferentes períodos, deslocados da Universidade de Budapest. Estes filósofos, que seguiram caminhos diferentes, tinham em comum a vontade de participar daquilo que devia ser uma crítica, ou autocrítica, da ortodoxia marxista, e uma tentativa de reformá-la.” (Amadeo, Boron, González, org. 2007:76).
<!--[if !supportFootnotes]-->[9]<!--[endif]--> HERRERA FLORES, Joaquín. Los derechos humanos desde La Escuela de Budapest. Madrid: Editorial Tecnos, 1989.
<!--[if !supportFootnotes]-->[10]<!--[endif]--> Herrera Flores toma emprestado o termo do educador pernambucano Paulo Freire. Empoderamento significa criar condições para que pessoas, grupos ou instituições se emancipem com suas próprias forças.

Um comentário:

  1. Até que enfim uma postagem genuinamente acadêmica neste blog!

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