quarta-feira, 14 de abril de 2010

SISTEMA PENAL E GLOBALIZAÇÃO

A nova fase do exercício do poder em escala planetária denominada globalização resulta de um processo de revolução tecnológica que lançou o capitalismo a uma fase de desenvolvimento sem precedentes na história. Analisar esse fenômeno não é tarefa nada fácil. Trata-se de um processo multifacetado, apresentando aspectos econômicos, políticos, sociais, culturais e ideológicos.
Na sua dimensão ideológica, a globalização pretende edificar-se no arenoso terreno a partir do qual uma irrestrita eliminação de barreiras e proteções engendraria um mercado mundial auto-regulável, desencadeando o crescimento de todo o planeta, produzindo a liberdade necessária para o desenvolvimento das atividades mais rentáveis e provocando uma nova distribuição internacional do trabalho que beneficiaria a todos. Essa ideologia se expressa, hodiernamente, sob a denominação de neoliberalismo.
O neoliberalismo exsurge, assim, como uma violenta reação teórica e política contra o Estado intervencionista e de Bem-Estar. Elaborada por Fredrick von Hayek, a doutrina neoliberal não representa apenas um resgate dos princípios do liberalismo clássico. Seus ardorosos defensores advogam que seu projeto é “muito mais que um programa econômico, senão que uma transformação global de toda a sociedade em todas as suas dimensões (...) A economia, o Estado, a democracia, a educação, a saúde e a própria cultura em sua integridade” devem sucumbir sob a “rapina neoliberal”. O fundamento do neoliberalismo, como ressaltado, ultrapassa a proposta clássica vislumbrando o mercado como societas perfecta. O intervencionismo estatal é visto como o principal causador das distorções e falhas do seu desenvolvimento. Tudo o que se opõe ao desenvolvimento e expansão do mercado, deve ser reduzido ou destruído (ANDRESON, 1999; HINKELAMMERT, Franz).
Enquanto realidade de exercício do poder, a globalização expressa uma nova fase de desenvolvimento do capitalismo em escala planetária. Em termos concretos, tal fenômeno espelha a superação da radical das fronteiras nacionais pelo capital, a redefinição das noções tradicionais de tempo e espaço, que, minando a soberania dos Estados nacionais, esfacela as tradicionais formas de regulação social, na medida em que a economia e o mercado substituem a política e o Estado enquanto instâncias privilegiadas de regulação normativa.
Na realidade, a hegemonia ideológica do neoliberalismo promoveu, enquanto corolário lógico de sua perversa dimensão econômica, o neoconservadorismo como sua indefectível expressão política. Ao fulminar as bases regulatórias do Estado, este modelo acentua o déficit social não só nas injustas e cambiantes democracias do capitalismo tardio, estendendo também seus estragos aos estáveis modelos democráticos dos países centrais.
Neste contexto, verifica-se a afirmação crescente de situações extremas, pelo nítido aumento do fosso que mantém em conjunto convívio dois modelos de sociedades contraditórios e irreconciliáveis. De um lado, o da opulência econômica dos setores dominantes gerenciadores do capitalismo internacional e da burguesia periférica integrada a ele, e, de outro, o da miséria social que relega 59,3% da população latino-americana a suportarem a existência abaixo da linha de pobreza - segundo relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Tal quadro, irrompendo uma grandiosa crise das relações de produção e sociabilidade, fulmina a possibilidade da consolidação dos Estados democráticos. A (re)afirmação de seus valores de igualdade, liberdade e solidariedade como âmbitos naturais da justiça e como instâncias estratégicas de (re)distribuição de ingressos e recursos, são violentamente sacrificados e desmantelados “em função do reforçamento darwiniano do mercado, procurando desse modo que o ‘virtuoso’ afã de lucro dos burgueses não tropece com interferências extra-econômicas que possam frustrar suas potencialidades de crescimento” (BORON, 2001, p. 71).
Em decorrência, assiste-se a uma espécie de guerra social latente, na medida em que a radicalização das desigualdades sociais desemboca em antagonismos, rupturas, ódios e choques extremados. Como percebe com percuciência Octávio Ianni, “a distribuição desigual da riqueza social, desde a mais estritamente econômica à cultural, constitui uma das bases das inquietações e reivindicações, dos movimentos sociais e protestos, do desespero e da violência”. E, assim, de repente, alguns membros das elites governantes e classes dominantes começam e reconhecer, com muita dificuldade, alguma relação entre violência e carência, riqueza e pobreza, prosperidade e terrorismo (IANNI, 2003, p. 201-4).
Conseqüentemente, a contenção do aumento da complexidade da luta de classes, gerada pela extensão desmesurada dos dogmas sacralizados da ideologia do mercado-total, dá-se exclusivamente no âmbito do sistema repressivo. Inegavelmente, os níveis chocantes de pobreza e marginalização presentes nas sociedades atuais, tanto no centro como na periferia do planeta, impõem o fortalecimento do controle dos segmentos que possivelmente possam subverter a racionalidade ultraliberal (neoliberal) do mercado, na medida em que a destruição do trabalho assalariado pelo “horror econômico” tende a gerar o aumento acelerado da violência, da criminalidade, da anomia e da desagregação social.
Nesta conjuntura, a hipertrofia do sistema penal obedece aos fundamentos da própria lógica econômica atual, direcionando suas baterias punitivas à neutralização das “classes perigosas”. Isto ocorre justamente pelo de que, como ressalta Ianni, a violência revela-se uma poderosa força produtiva, posto que assegura e reproduz as práticas e instituições necessárias ao desenvolvimento da economia e da exploração capitalistas. Nas precisas palavras do autor,
“Mais uma vez está em causa a forma como se processam a realização, a organização, o funcionamento, e o desenvolvimento da propriedade privada, na sociedade burguesa, capitalista. Em princípio todos são proprietários, tanto os proprietários do capital como os da força de trabalho: empresários e assalariados. Entre os que vendem força de trabalho, no entanto, são muitos os que não encontram compradores; condenam-se à inação; são condenados em muitos casos à inação.
Nesse sentido é que a violência institucionalizada, traduzida em mecanismos de oferta e demanda no mercado, disciplina rigorosa, praticamente militar, nos locais de trabalho, vigilância policial contínua sobre o desempregado, brutalidade policial relativa ao trabalhador negro, nativo, branco, árabe, asiático ou outro, conforme o país – nesse sentido é que a violência revela-se uma poderosa força produtiva. Sim, ao lado do capital, tecnologia, força de trabalho, divisão do trabalho social, mercado e planejamento, a violência institucionalizada, o Estado como violência organizada e concentrada da sociedade, revela-se poderosa força produtiva” (IANNI, 2003, p. 149).
Além disso, a nova expansão do capitalismo em escala global fomenta toda sorte de rupturas e violência, abalando instituições, modos e estilos de vida, visões de mundo. A ‘fábrica da violência’ germina, nasce, floresce, na própria ‘fábrica da sociedade’. A violência emerge do ventre do próprio tecido social, das formas de sociabilidade e do jogo das forças sociais, que engendram as suas respectivas engrenagens de dominação e exploração e, portanto, também de violência. Nesse sentido, percebe Nils Christie (1998, p. 56), que “um princípio básico do controle social é de que os que possuem muito e os que nada têm são os dois extremos mais difíceis de governar. Os que muito possuem também têm muito poder, e os que nada têm, também nada têm a perder”. Assim sendo, pela sua posição de fragilidade social, as classes subalternas recebem com mais freqüência a fúria da violência.
Dentro deste espectro, os EUA, símbolo máximo do modelo neoliberal, representam um dos exemplos mais robustos desta tendência da substituição da promoção de políticas sociais pela intensificação de políticas penais. A primeira economia do mundo operou, progressivamente, como sinaliza o sociólogo Loïc Wacquant (2001, p. 19-21), a alteração de um (semi)Estado-providência por um Estado Penal e policial. Configurou-se, assim, segundo sugere o autor, uma espécie híbrida de Estado, o “Estado-centauro”, guiado por uma cabeça liberal montada sobre um corpo autoritário. Este modelo estatal liberal-despótico “aplica a doutrina do ‘laissez-faire, laissez-passer’ a montante em relação às desigualdades sociais, mas mostra-se brutalmente paternalista a jusante no momento em que trata de administrar suas conseqüências”.
O controle das populações marginalizadas fomenta uma verdadeira indústria do controle do crime, que abocanha vultuosas somas dos recursos estatais para o setor repressivo. Essa indústria pretende enfrentar os problemas da distribuição (desigual) da riqueza e do trabalho, na medida em que fornece emprego e se constitui numa das atividades mais lucrativas do mercado norte-americano. Além da abundante matéria-prima, ou seja, das crescentes hordas de ociosos que irão compor suas fileiras, não existem, como ironiza Nils Christie, “os habituais problemas de poluição ambiental. Pelo contrário, o papel atribuído a esta indústria é limpar, remover os elementos indesejáveis do sistema social”.
Neste sentido, a concentração de riqueza e poder nas mãos de uma cada vez mais restrita elite governante globalizada, por meio da expropriação (social) do Estado, fomenta uma extensão hobbesiana do poder punitivo. É interessante notar que, no período industrial, o Panóptico de Bentham representava, como percebeu o gênio de Foucault, o projeto ideólogico punitivo por excelência. Sua missão consistia em produzir um poder disciplinar onipresente configurador da docilidade dos corpos. Sendo assim, o poder (de punir) deveria formar “corpos dóceis” que permitissem a extração de sua máxima utilidade econômica. No capitalismo globalizado, ao revés, diante da dispensabilidade dos corpos humanos para a produção da riqueza, o poder (penal) funciona como um mecanismo que (de)limita as fronteiras da estratificação social.
Como lembra Nilo Batista (1996, 75-6), no momento em que o capital financeiro transnacionalizado abandona o disciplinamento dos corpos, agora indispensáveis tão somente à reprodução do consumo, a máxima que regeria a lógica da punição na sociedade global seria: a imposição de penas alternativas aos potenciais consumidores e o confinamento para os “consumidores falhos”.
Com efeito, historicamente, a missão (secreta) do sistema penal, sempre consagrou a máxima de que o “encarceramento serve bem antes à regulação da miséria, quiçá à sua perpetuação, e ao armazenamento dos refugos do mercado”. Portanto, as populações marginalizadas, excluídas do ciberespaço da pós-modernidade, vão dispor dos únicos espaços que lhe são reservados no mundo globalizado: o do confinamento. Uma alternativa (catastrófica) entre duas: os guetos como prisões sociais ou as prisões como guetos judiciários (WACQUANT, 2001, p. 33).
Na matriz do mundo neoliberal, a população carcerária atinge índices alarmantes, sendo que 1 em cada 3 negros, na faixa etária de 18 a 35 anos, encontra-se sob o jugo da justiça criminal. É fácil ver-se, pois, que o objeto primordial da nova avalanche punitiva são, necessariamente, os indesejados, os supérfluos. As “fábricas de imobilidade” se colocam, assim, como alternativas à inexistência de trabalho, fazendo com que no âmbito estatal, a guerra contra a pobreza se transforme, como aduz Wacquant, numa guerra contra os pobres (WACQUANT, 2001, p. 33).
Além disso, a produção do medo e da insegurança – discursos violentamente propagados pela mídia de massa – possui a função de (re)legitimar a crescente onda de hipertrofia punitiva. Tal postura compõe nitidamente a dinâmica da indústria do controle do crime, que assume hodiernamente patamares imensuráveis de lucratividade, mormente nos Estados Unidos. A própria privatização das instituições prisionais, o desenvolvimento de firmas grandiosas de prestação de serviços com cotações na bolsa de valores (entre elas, firmas de vigilância, de arquitetura e de construção responsáveis pela edificação de novos presídios e de prestação de serviços aos estabelecimentos, como de saúde, alimentação, limpeza, etc.), sinalizam que no outro lado da América “prisões significam dinheiro, muito dinheiro” (CHRISTIE, 1999, p. 101)
O fortalecimento desta nova política de guerra ao crime, obedecendo aos eixos centrais da racionalidade hegemônica do mercado, globaliza-se na esteira dos fluxos dos capitais voláteis, invadindo rapidamente as tendências de controle social de diversos países. As políticas de “lei e ordem” e “tolerância zero”, desenvolvidas em Nova York, ganharam dimensões globais, transformando-se no grande modelo de combate à “criminalidade” urbana. Tais políticas, velozmente assumidas como paradigmas de controle social da globalização neoliberal, pretendem, como adverte Wacquant, “efetuar uma ‘limpeza de classe’ do espaço público, empurrando os pobres ameaçadores (ou percebidos como tais) para fora das ruas, parques, trens, etc” (WACQUANT, 2001, p. 22 e segs).
Desta forma, o “Estado mínimo” tão presentemente afirmado pela hegemonia do discurso neoliberal produz, paradoxalmente, um “Estado máximo” em matéria punitiva. Assim, as prisões assumem, como destaca Zygmunt Bauman, não a função de fábricas de disciplina, mas são efetivamente planejadas como fábricas de exclusão. Portanto, para a massa de pobres e excluídos, que o debilitamento das condições de trabalho e existência produz, remetidos aos espaços de confinamento do sistema prisional, “o que importa é que fiquem ali”(BAUMAN, p. 121).
Nesta conjuntura, percebe-se que o pano de fundo desta nova postura punitiva globalizada, indispensável aos anseios da mundialização sem barreiras da economia, resume-se ao fato de que ao crescimento terrível e avassalador da exclusão social, “o Estado responderá não com um fortalecimento de seu compromisso social, mas com um endurecimento de sua intervenção penal. À violência da exclusão econômica, ele oporá a violência da exclusão carcerária” (WACQUANT, 2002, p. 74).
O sistema penal assume, desta maneira, a função de verdadeira solução das tensões, clivagens e antagonismos sociais, econômicos, políticos, culturais, étnicos, religiosos e morais que a globalização neoliberal aprofunda e agrava. Erigi-se, portanto, no único mecanismo viável de manutenção da segurança dos segmentos dominantes. Sua atuação restringe-se, nesta medida, não a promover a proteção necessária de bens jurídicos de absoluta relevância para a maioria dos membros da sociedade e com a devida devoção aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, mas sim a garantir brutalmente a conservação de uma ordem social desigual e autoritária.
Nos países centrais, a afirmação desta nova onda punitiva funciona como contraceptivo da crescente conflituosidade que o desmantelamento do Estado social desencadeou. No entanto, na realidade dos países periféricos, sempre marcados por processos de violência institucional presentes desde a subjugação colonial, a afirmação de um Estado penal sinaliza o retorno ao despotismo estatal hobbesiano como via única para a contenção da nova barbárie neoliberal, implicando na dizimação legalizada de amplos setores da sociedade.

Por: Prof. Thiago Fabres
Postagem: Prof. Ruben Rockenbach

7 comentários:

  1. Nossa! Daqui a um tempo temos que selecionar algumas postagens e fazer o primeiro livro do cultura do controle! Nem sempre se encontram por aí, nessa linguagem, meio acadêmica, mas compreensível tantos textos sobre temas tão pulsantes. Tinha lido esse seu texto, depois li o do Jádel, meu, que time! (e olha que é só uma parte do nosso potencial de blogueiros!). Nas faculdades em geral só temos a chance de conhecer um pouquinho o pensamento do colega de disciplina pelo aluno "atravassedor" - o prof. X pensa discorda do Sr... - ou no embate das bancas. Mas aqui de forma mais solta cada um pode jogar suas idéias e divertir os demais... E isso é vida intelectual como só se tem nos tempos de bolsistas da capes...
    Sandro Sell

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  2. Agora eu sei porque te criticavam por não escrever. Teu texto é fabuloso. (-̮̮̃•̃)

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  3. agradeço ao Sandro, Fernanda e anônimo as palavras. Vou tentar sair do esconderijo com mais frequência, Um forte abraço, Thiago

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  4. Grande THIAGO
    PARABÉNS
    Serve, este texto, como uma profunda reflexão aos operadores do Direito.
    Abraço

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  5. Parabéns pelo texto e pela grandiosa interpretação!
    Gostaria de saber qual obra do Octávio Ianni você utilizou nas citações, por favor.
    Abraço, Joss.

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  6. O mundo tornou-se perigoso, porque os homens aprenderam a dominar a natureza antes de se dominarem a si mesmos. Albert Schweitzer

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