Parece que o sistema punitivo não buscou criminalizar o gênero feminino com tanta intensidade como o masculino. Em seu processo de criminalização parece haver uma busca ao gênero masculino, reportando-se às mulheres como vítimas de crimes, ou ainda, diante das análises da criminalidade feminina se limitavam ao que poderíamos chamar de delito de gênero, como infanticídio, aborto, homicídio passional. A mulher criminalizada por outros crimes era mostrada como virilizada ou portadora de uma patologia degenerativa, porque a mulher mais ou menos normal não era capaz de cometer delitos violentos (ZAFFARONI, 1993, p.1).
A visão que se tinha da mulher como incapaz de cometer delitos, tem um viés da cultura machista, universalista e moralista, que projetou na mulher para um âmbito privado, cujo controle se dá de modo informal, exercido pela família, a escola, a igreja, a vizinhança (ESPINOZA, 2010, P.39). Assim, quando cometia uma conduta tipificada no Código Penal, a mulher parecia ter transgredido a ordem em dois níveis, primeiro a da sociedade, pois violou uma norma, e segundo a ordem da família, abandonando um papel que ela deveria representar, no qual era socialmente esperado que ela cumprisse (LEMGRUBER, 1983, p. 86). Diante disso, a mulher é criminalizada por sua conduta ilícita e também estigmatizada pela violação do comportamento socialmente esperado, ou seja, recebe também um ônus da coação moral social.
O resultado disso é que a mulher taxada como criminosa passa a ser vista como agente de uma transgressão ainda maior, pois a ação criminosa deveria fazer parte do mundo masculino e a mulher que assume esse papel acaba por se transformar numa espécie de monstro, realizando uma dupla transgressão. Michel Foucault procura entender a figura do monstro em nossa sociedade moderna, definindo-a como sendo essencialmente uma noção jurídica. Desta forma, o monstro seria aquele “que combina o impossível com o proibido”. (FOUCAULT, 2002, p. 70)
A clientela do Sistema Punitivo é historicamente constituída consideravelmente por homens[2]. Deixando suspeitar que o sistema punitivo em seu discurso trabalhe de modo a omitir situações que abarcam o gênero feminino. Sobre isso, Zaffaroni (1993, p.1) diz que nessa omissão, aparentemente ingênua, a mulher aparece como excluída do poder punitivo, centrando quase unicamente nos homens, pois a mulher é selecionada como vítima.
As Mulheres diante do sistema penal, por inúmeras situações são tratadas e visualizadas como vitima de crimes, e poucas vezes autoras de crimes. Desse modo, Andrade (2003, p.175) acentua que “o estereótipo da mulher passiva (...) na construção social do gênero, divisão que a mantém no espaço privado (doméstico), é o correspondente exato do estereótipo da vítima no sistema penal”.
Tal estereótipo não corresponde ao selecionado pela criminalização secundária[3], onde o olhar selecionador do policial é voltado à figura masculina, construído ideologicamente como mais propenso a cometer crimes. A mulher não é estigmatizada como criminosa, pois sua imagem social está ligada a passividade e fragilidade, pela ideologia de que seu lugar é no espaço privado, e, por estar resguardada na intimidade – onde o sistema penal não opera intensamente, como opera no espaço público (rua).
Definiu-se ao longo da história determinadas atribuições, papéis e lugares, que homens e mulheres têm em uma determinada sociedade. Segundo Margareth Rago (2004, p.32), a mulher foi projetada para o âmbito privado (Lar), ao contrário dos homens que tinham seus lugares na esfera pública (trabalho). A ideologia da domesticidade e incapacidade vai se configurando para as mulheres, devendo elas submeter-se à figura masculina em casa e fora dela, sob pena de serem olhadas como anormalidades ou monstruosidades.
A mulher que resolveu adentrar na esfera pública/masculinizada foi estigmatizada moralmente no senso comum, passando a ser vista como prostituta, desonesta, adúltera, podendo até mesmo ser encarcerada e ainda taxada moralmente como uma figura diabólica, passando a ser inimiga da moral e dos bons costumes, essa mulher (pública) estava fora dos padrões morais e era vista com repúdio social.
Andrade (2003, p. 2) lembra que quando selecionadas pelo Sistema Penal, as mulheres eram beneficiadas por este, recebendo certo privilégio por sua condição feminina, como “a exculpante de um estado especial (puerperal, menstrual, hormonal, emocional) e à sua espera os manicômios, antes da prisão”. Ainda, existem tipos penais que são destinados de forma mais especifica às mulheres, tanto no papel de vitimas (estupro, violência domestica)[4] , como de criminalizadas (abortivas)[5].
Mas o que está ganhando destaque atualmente são as criminalizações de mulheres envolvidas com o tráfico de drogas, que faz superlotar Presídios e Penitenciárias femininas de todo país.
No Presídio Feminino de Florianópolis (PFF) no ano de 2006 a porcentagem de mulheres condenadas por tráfico de drogas era de 71% (setenta e um). Fator este que superlotava um espaço construído para abrigar 66 presas. Isso é reflexo da política criminal repressiva voltada aos traficantes, intitulados como inimigos da sociedade.
A clientela do sistema prisional feminino de Florianópolis é claríssima, são aquelas socialmente controladas, vigiadas e rotuladas, que se encontram fora do mercado de trabalho formal, advindos de localidades empobrecidas, onde se impera a atuação criminalizadora do Estado.
Por fim, quando há inimigos a serem combatidos, o sistema penal parece não acolher determinado gênero, seleciona aqueles que se enquadram na conduta a ser eliminada, como no tráfico de drogas. Isso faz com que cresça de forma impressionante o número de mulheres encarceradas por este tipo de crime.
Por: Gabriela Jacinto (estudante de Direito do CESUSC)
Postagem: Prof. Ruben Rockenbach
REFERÊNCIAS
DIAS, Maria Berenice. Aborto é crime?. Disponível em http://www.mariaberenice.com.br/pt/aborto-e-crime.cont#. Acesso em 20 de março de 2010.
[2] Com relação a grande massa carcerária composta por homens, segundo dados oficiais do Departamento Penitenciário Nacional, no ano de 2005 existiam presos em regime fechado 4.470 homens e 294 mulheres no Estado de Santa Catarina.
[3] Conforme acentua Baratta os processos de criminalização secundária acentuam o caráter seletivo do sistema penal, guiados por preconceitos e estereótipos, para atuação dos órgãos de investigação e órgãos judicantes (2002, p.176).
[4] A redação do Código Penal vigente, dizia ser estupro - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça, onde somente mulheres poderia ser vítima deste delito, mas com a Lei nº 12.015/2009, houve a alteração da especificidade mulher para alguém. No caso da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), não se destina somente à mulher como uma possível vítima, mas a proteção determinada em lei só está prevista para ela.
[5] É interessante frisar, que a questão criminalização do aborto é algo que expressa muita polêmica, principalmente das organizações favoráveis a legalização e as entidades religiosas. Não podemos esquecer que o Código Penal brasileiro é de 1940, época em que a sociedade estava condicionada a preceitos conservadores religiosos (DIAS, 2010, p.1).
Gabriela: você destaca um ponto central: a mulher seria pouco criminosa por que estaria acima/ou abaixo desse comportamento afrontoso às leis. A trangressão feminina é coisa paralela, rasteira, daninha, equiparada à fofoca ou proveniente de seu temperamento histérico... Isso revela algo singular: até para adquirir o status de criminoso é preciso ser tido como alguém plenamente capaz. Assim a mesma história que não permitiu mulheres bandidas em larga escala (exceção à tara pelas bruxas da Igreja medieval) não permitiu as mulheres serem ouvidas enquanto filósofoas ou juristas.
ResponderExcluirMas agora leio seu texto. E sinto que você tem plenas condições: a. de ser uma grande pensadora da área jusfilosófica; b. de cometer ilícitos penais.
Parabéns, pessoa!
Prof. Sandro Sell
Gabriela, as informação trazidas pelo seu texto são majoritariamente fundadas no livro do Lombroso e do Ferrero, La femme criminelle et la prostituée, que tem uma versão brasileira no livro da Rachel Soihet, Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana (1890-1920). Para continuidade desse trabalho é essencial que se aprofunde um pouco na produção da construção das perspectivas de genero buscando obras relacionadas propriamente a isto. Outra obra que deverias dar uma olhada, pois abordas a sociedade de Florianópolis e o conceito de vítima da mulher perante o crime, é a obra da Raquel Alvarenga Venera. Sou estudante de História e de Direito e meu TCC é uma abordagem da relação de genero e a criminalização feminina.
ResponderExcluirTeu trabalho está muito bom, caso queiras entrar em contato deixo meu email. fernanda.ma@gmail.com
Boa Sorte,
F.
Apesar de considerar as mulheres como inimigas a serem combatidas no caso do tráfico, elas ainda são consideradas co autoras destes crimes, "sempre há um homem por trás desta conduta”. Mesmo no tráfico, a justificativa apresentada é de que as mulheres cometem crimes “por amor”.
ResponderExcluirIngrid Vier