domingo, 18 de abril de 2010

Direito e Arte (pedido de revogação da prisão preventiva)

F.B.P.S., denunciado pela prática das condutas delituosas insertas nos artigos 265, 138, caput, 139, caput, 140, caput, combinadas com o artigo 141, inciso II e artigo 147, caput, todas do Código Penal brasileiro, nos autos da ação penal em epígrafe, através de seu defensor (fls. 123), vem, muito respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, apresentar PEDIDO DE REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA, nos termos dos fatos e motivos doravantes externados:

a) ARTE COMO MEIO DE LUTA PELA DIGNIDADE HUMANA: motivação

01. Trata-se de mais um (dentre tantos outros já feitos) pedido de revogação da prisão preventiva em favor do acusado F.B.P.S.. No entanto, ao contrário dos requerimentos outrora realizados em que reinavam argumentos jurídicos em todas as entrelinhas do texto, desta feita recorreremos à arte como meio de luta pela dignidade humana e, sobretudo, para fazer (ou, pelo menos, tentar fazer) explodir o formalismo dogmático e a ordem instituída.

02. O causídico subscritor acredita que no caso em tela argumentos jurídicos serão incapazes de obter êxito na liberdade do acusado (e isto se deve às reiteradas negativas de soltura). Registre-se, de antemão, que o “abandono” ao jurídico não significa ofensa e/ou desrespeito as (aos) operadoras (es) do direito que atuam na causa. Ao contrário, é um manifesto pelo novo, pela mudança, um convite a caminhar por lugares afastados da ciência dogmática jurídica. O respeito se mantém, assim como sempre se manterá! Aliás, só existem reiterados pedidos porque há respeito e confiança.

03. Eis a motivação do uso da arte.

04. É que – no dizer de Augusto Campos – toda arte requer de nós algum instinto revolucionário sem o qual ela não teria sentido[1]. A manifestação artística aporta sempre um componente político de contestação e de ativação da nossa capacidade de reagir simbolicamente ao entorno das relações que vivemos[2]. Neste sentido o filósofo espanhol Joaquín Herrera Flores discorre que a grandeza da arte consiste em recordar-nos continuamente que podemos mudar hábitos e percepções e finaliza afirmando que com a arte “podemos nos separar dos continentes – os marcos referenciais e simbólicos que aprendemos para poder atuar em nosso mundo – e rumar para a invenção constante de ilhas – novos limites, novos hábitos, enfim, novas formas criativas de entender e atuar em nossas relações com os outros, com a natureza e conosco mesmos[3].

05. A obra de arte nos induz ao movimento, ao reconhecimento da pluralidade do mundo e à proposição de caminhos de igualdade e dignidade. Ao contrário da ciência – e de seus dogmas imutáveis – que estabelece uma autoridade (ou atua, em outros termos como definiu o sociólogo francês Pierre Bourdieu, através de seu “poder simbólico[4]), um metanível que potencia a aparição de mediadores, de representantes da verdade, a arte, por sua vez, permite o múltiplo comentário, a plural interpretação, a variedade de leitura e recepções (não há uma única completa e verdadeira descrição da realidade). A razão científica busca um ponto final, uma verdade, um resultado, ao passo que a arte – como defendeu Freud[5]submete-se à contínua e fluida interpretação, sempre renovada.

06. Mas a obra de arte pode auxiliar o campo jurídico? O direito (e a sua dogmática) é um sistema complexo, completo e perfeito?

b) TEOREMA DA INCOMPLETEZA DE KURT GÖDEL: legitimação

07. Por certo que não! Todo sistema encontra um ponto básico para entender o sistema que está fora dele.

08. No final do século XIX, perante o Congresso de Matemática de Paris-França, o conhecido e respeitado professor Hilbert apresentou vinte e três problemas que – de acordo com seus próprios estudos – ocupariam (e preocupariam) os matemáticos no século XX. Dos referidos problemas apresentados por Hilbert, destacou-se o segundo deles que questionava se seria possível provar que os axiomas da aritmética são consistentes, ou seja, se é seguro constatar que uma vez dado um número finito de passos lógicos corretos nunca se chegará a uma contradição.

09. Eis que, a partir desse questionamento apresentado, desenvolveu-se inúmeros estudos e teorias tendentes a apresentar uma resposta ao problema apresentado por Hilbert. Entre 1900 e 1930 vários matemáticos formalistas (Bertrand Russel e o próprio professor Hilbert) levaram a efeito tentativas para provar que a matemática, em sua totalidade, poderia ser colocada em bases axiomáticas que unificassem todos os campos da disciplina em um corpo lógico-formal e coerente, a ponto de ser capaz de apresentar respostas seguras a quaisquer perguntas que viessem a ser formuladas. Ocorre, contudo, que em 1931, o jovem matemático austríaco Kurt Gödel apresentou seus estudos no sentido de que em um sistema lógico-formal existem assertivas verdadeiras que não podem ser provadas.

10. É o chamado Teorema da Incompleteza de Gödel.

11. Frise-se que o referido teorema, embora concebido entre a matemática, tem aplicação em inúmeros sistemas, dentre eles o Direito. Assim, um sistema é tido como completo quando toda e qualquer proposição pode ser provada com os elementos deduzidos no próprio sistema sem a necessidade de se buscar um argumento fora do sistema ou em outro sistema para a demonstração da veracidade ou não da proposição. É o que se chama de consistência interna do sistema axiomático (necessidade de provar a validade ou não de uma declaração dentro da própria lógica do sistema e sem conflito algum com qualquer outro elemento lógico). No entanto, o Teorema de Gödel demonstra que em todo e qualquer sistema lógico-formal sempre haverá proposições que não se poderá provar serem verdadeiras ou falsas. Desta maneira, não existe um sistema completo, uma vez que sempre haverá proposições que para prová-las deveremos importar/trazer de fora elementos a este sistema. Ou, em outros termos, nenhuma teoria formal pode ser simultaneamente poderosa, consistente e completa.

12. Aqui, pois, nossa legitimação para “fugir” do direito. Tudo no desiderato de afastar os dogmas do direito (ou, como denunciou Jacques Derrida[6], seu “fundamento místico de autoridade”) e, especificamente, os fundamentos jurídicos utilizados nas reiteradas negativas de liberdade do acusado F.B.P.S..

13. Utilizaremos, então, o romance do escritor austro-húngaro Franz Kafka chamado “O processo”[7].

c) “O PROCESSO” – ROMANCE DE FRANZ KAFKA: aplicação

14. Em “O processo” Kafka nos conta a história de Josef K. (personagem principal do enredo), um bancário que aos 30 anos de idade é surpreendido por uma ordem de detenção. Franz Kafka inicia a obra constatando: “alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum[8]. De fato, ao acordar pela manhã e ainda esperando a entrega matinal de seu café, Josef K. é preso sem motivos sabidos e submetido a um processo tortuoso, demorado, permeado de rituais, burocracias e incompreensível. Um dos guardas encarregados de efetuar a prisão de Josef K. anuncia: “o senhor está detido”. Ao passo que Josef K. retruca: “é o que parece, mas por quê?”. Finaliza o guarda: “não fomos incumbidos de dizê-lo”. Assim dá início uma das maiores obras literárias do século XX. A narrativa possui um tom nebuloso e desorientado, aparentando que o personagem principal encontra-se no centro de um “labirinto” tipicamente Kafkiano. No cerne da questão está a confusão mental de Josef K. ante as sequências de acontecimentos surreais que se desenrolam na trama. Uma irrealidade que beira às raias da loucura. Por inúmeras vezes o personagem acredita que sua detenção é uma brincadeira promovida por seus amigos e está sempre se questionando pelo fato de ser acusado e não conseguir descobrir a mínima culpa da qual o pudessem acusar[9]. Josef K. nunca é informado dos motivos pelos quais está sendo acusado (não se sabe ao certo as causas reais da perseguição) e, ao mesmo tempo, afirma sua completa inocência (embora não saiba responder ser inocente de quê). A acusação jamais é apresentada. Em verdade, após lutar incessantemente para descobrir do que é acusado, Josef K. percebe que a culpa é inerente a ele e não pode fazer nada contra isto. Ao final, na obra de Kafka, o personagem central é assassinado na véspera de seu trigésimo primeiro aniversário por dois senhores absolutamente desconhecidos. Deitado em uma rocha e com uma faca de açogueiro colocada em seu coração, Josef K. pensava internamente: “Havia ainda possibilidade de ajuda? Existiam objeções que tinham sido esquecidas? Sem dúvida, estas existiam. A lógica, na verdade, é inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver. Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado?[10]. Com efeito, a mencionada obra Kafkiana indireta e simbolicamente nos induz ao convencimento de que a razão pode pouco contra a violência irracional (Josef K. luta o tempo todo contra as circunstâncias para descobrir sua acusação e ao final morre alegando sua inocência frente ao processo que segue suas leis próprias).

d) O PROCESSO – CASO DE F.B.P.S.: liberdade

15. Em relação ao processo objeto de análise o “labirinto” Kafkiano de “O processo” nos servirá como pilar fundamental para postular a revogação da prisão preventiva e a consequente liberdade do acusado F.B.P.S.. A arte e seu critério de valor de rechaçar a existência de valores e verdades fixas e imutáveis em busca das paixões alegres, àquelas que Spinoza afirmou tratar-se de molas propulsoras da potência humana – transformar o mundo na medida em que transformamos a nós mesmos[11] (quanto maior é a alegria que nos afeta, tanto maior é a perfeição a que chegamos).

16. De fato, F.B.P.S. está privado de sua liberdade sob uma acusação incerta, insegura e que ainda não se corporificou no inteiro teor do processo criminal. Paira sobre o acusado uma prisão fundamentada em um crime que de nada se conhece (artigo 265 do Código Penal – figura delitiva que sustenta a prisão preventiva). Frise-se que não está se afirmando a inocência absoluta de F.B.P.S., até mesmo porque o próprio acusado reconheceu em seu interrogatório a prática de determinados atos em desfavor das vítimas. No entanto, sua liberdade está restringida por causas reais inexistentes. É como se – assim como o personagem Josef K. – a culpa lhe seja inerente e nenhum argumento agirá em seu favor! Desde que a prisão do acusado foi levada a efeito está se perguntando: em qual das condutas legalmente previstas no artigo 265 do CP incorreu o acusado? Atentou contra a segurança ou o funcionamento de serviço de água? Luz? Força ou calor? Ou qualquer outro de utilidade pública? A resposta, porém, continua sendo aguardada. Enquanto isso se percorre o caminho novamente e se afirma: a acusação lançada contra o denunciado sedimenta que F.B.P.S. teria atentado contra o funcionamento de serviço de utilidade pública por meio de telefonemas e correios eletrônicos e estas condutas não se amoldam ao tipo penal do artigo 265 do Código Penal (fls. II-IV). E, mais, em relação à interrupção ou perturbação de serviço telegráfico ou telefônico, há delito específico (eis a acusação nos termos da exordial acusatória: artigo 266 do Código Penal). É dizer: no crime previsto no artigo 265 do CP não se encaixa a telefonia, que encontra amparo no artigo 266 do diploma penal. E, o que é mais grave!, a imputação ao artigo 265 do Código Penal é que sustenta a possibilidade da prisão preventiva (fls. 58-61). Assim, o acusado está preso preventivamente pela acusação do artigo 265 do CP (único dos crimes em que restou acusado que permite a prisão preventiva). Ocorre, no entanto, que não há no inteiro teor do processo criminal qualquer (e qualquer!) elemento apto a indicar que o acusado F.B.P.S. incorreu na conduta delitiva inserta no artigo 265 do Código Penal (“atentar contra a segurança ou o funcionamento de serviço de água, luz, força ou calor, ou qualquer outro de utilidade pública”).  

17. O que argumentar juridicamente diante desta situação? Defender-se de quê? Fundamentar a liberdade com base em quê?

e) PAIXÕES ALEGRES E REINVENÇÃO: pedido

18. Certamente o final deste processo não deve ser o mesmo daquele narrado por Kafka (Josef K. luta o tempo todo contra as circunstâncias para descobrir sua acusação e ao final morre alegando sua inocência frente ao processo que segue suas leis próprias).

19. O que deve morrer ao final? Devem ser sepultadas as paixões tristes, os dogmas imutáveis, a dogmática jurídica cerrada, a idéia de uma verdade absolta, de uma única versão, de uma possibilidade apenas.

20. E, o que deve explodir? Vir à tona? A idéia de que nossos hábitos e práticas não constituem a única racionalidade existente, de que devemos nos reinventar constantemente, de que não podemos ficar na repetição do mesmo negando toda a diferença e fechando o caminho a outras formas de representação e de ação. Reinventar! Acreditar no devenir, no fluxo constante da história. Por uma nova ética, nova construção de valores, nova responsabilidade humana frente aos outros, outras e nós mesmos. Somos encarregados de manter o movimento perpétuo, de transformar permanentemente todas as coisas: “eu sou o espírito que sempre nega, e isso com razão porque tudo que existe merece acabar”, disse o diabo de Goethe ao se apresentar a Fausto. Devemos pensar, é dizer: pensar de outro modo[12].

AO TEOR DO EXPOSTO, acreditando nas paixões alegres, na pulsão da vida, em nossa constante e interminável análise e, sobretudo, na potência ontológica e política (tudo está por fazer e por ser reinventado), a defesa requer seja revogada a prisão preventiva.

Por: Prof. Ruben Rockenbach



[1] Extraído do sítio eletrônico http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2822,1.shl. Acesso em 15/04/2010.
[2] Ver as obras do pintor espanhol Pablo Picasso, em especial “Guernica” (e seu contexto).
[3] HERRERA FLORES, Joaquín. O nome do riso: breve tratado sobre a arte e dignidade. Tradução de Nilo Kaway Junior. Porto Alegre: Movimento; Florianópolis: CESUSC; Florianópolis: Bernúcia, 2007, p. 19.
[4] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
[5] FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável. Em: Obras Completas, Edição Standard Brasileira, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1969.  
[6] DERRIDA, Jacques. Fuerza de la ley. El fundamento místico de la autoridad. Madrid: Editorial Tecnos, 2002.
[7] KAFKA. Franz. O processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[8] Obra citada, p. 07.
[9] Obra citada, p. 17.
[10] Obra citada, p. 227-228.
[11] SPINOZA, Baruch. Ética demonstrada según el orden geométrico. Tradução de Vidal Peña. Madrid: Alianza Editorial, 2006.
[12] Neste sentido: DELEUZE, Gilles. Empirismo y subjetividad. Barcelona: Gedisa, 1992.

5 comentários:

  1. Nossa! Tome erudição para construir e, por óbvio, para rebater tese tão fluida e consistente a um só tempo. Quando o direito leva ao absurdo é preciso inspiração para fundamentar uma inresignação, uma pulsão de vida, contra o obscurantismo dogmático daninho. Parabéns, inclusive pela aula de lógica tão bem ministrada.
    Sandro Sell

    ResponderExcluir
  2. Faltam palavras para expressar a minha emoção ao ler esse pedido. Simplesmente precioso, jóia rara.
    Grande abraço,
    Thiago Fabres.

    ResponderExcluir
  3. Não entendi muito bem seu texto (problema meu que não sou formada e loira), mas nas partes que entendi é muito instigante. E o juiz disse o que?

    ResponderExcluir
  4. Ao final, o acusado foi solto porque o tempo da prisão preventiva superou o prazo da própria pena (pasmem!). Claro que no caso, em razão da posição “influentes” das vítimas, argumentos jurídicos não foram suficientes para revogar a preventiva (eis a angústia: relações de poder).

    Ruben

    ResponderExcluir
  5. Ludy
    Nossa estou pasma! Simplesmente uma peça rara, parabéns.

    ResponderExcluir