segunda-feira, 29 de março de 2010

A verdade e o caso Isabella

A verdade apurada num processo penal não é necessariamente a verdade "verdadeira", mas aquela que resulta da confluência entre os elementos probatórios apresentados nos autos e a capacidade de ligá-los de forma coerente (espera-se) e razoavelmente consistente (exige-se) à tese que deve sair vencedora (condenação/absolvição ou seus intermediários). Nem tudo que é consistente pode ser prova (as provas devem ser lícitas), e nem tudo que é inconsistente não pode vir a sê-lo se, por erro ou preconceito dos julgadores, vier a ser admitida como tal.
As provas aprovadas previamente serão então submetidas ao crivo do contraditório e, se ambos, defesa e acusação, forem sagazes e zelosos, acredita-se que só aquelas de fato relevantes para o deslinde da questão sobreviverão ao debate. A falsidade, o erro e a malícia, eventualmente travestidos de prova, cairão por terra, serão desmascarados entre as falas e as réplicas. E os julgadores poderão dar sua decisão de direito esclarecida, uma vez que já não tem mais dúvidas sobre o fato.

Mas, fragilidade das coisas humanas, as provas são o quê? Banalidades como falas de testemunhas (nem sempre honestas ou cientes do que afirmam), cenas de crime (quase nunca adequadamente preservadas), opinião de peritos (os fatos só falam “por si” nos seriados do CSI ou para quem é analfabeto filosófico), inferências de julgadores – juízes ou jurados – nem sempre muito profundos em seus raciocínios.

Hoje se julga os Nardoni. Serão condenados, segundo a aposta de todos. A opinião pública (opinião publicada) fará com que as únicas ligações possíveis entre tantas provas e presunções levem a inferência dos julgadores para um único lugar: ambos, pai e madrasta, são culpados. Talvez sejam mesmo. Mas em que medida deve ser atribuída à culpa de cada um? Igualá-la por presunção (os dois quiseram e fizeram tudo junto) só confirma a distância entre processo e verdade. Há tantas possibilidades de narrar a mesma morte com os mesmos elementos de maneiras tão diversas!

Isabella morreu e não havia motivos lógicos, morais, jurídicos ou de qualquer ordem para ter morrido. Foi uma perda cruel, que tocou no coração de todos nós. Aqueles que provocaram tão triste fato merecem a pena correspondente à sua culpabilidade. Não há, por óbvio, uma pena exata. Entre os 12 e os 30 anos previstos para o homicídio doloso qualificado há muita margem para o juiz dar sua pessoal valoração ao caso. É da regra do jogo. Uma opinião pessoal fundamentada ainda é uma opinião pessoal. A disparidade de pena para crimes semelhantes e pessoas com histórico penal igualmente semelhante dá uma idéia clara disso (e o argumento de que “cada caso é um caso”, dado sua obviedade desnecessária, só pode significar um recurso retórico para esconder que cada julgador – ainda que no mesmo caso – é um julgador diferenciado e um caso à parte).

Voltando aos Nardoni: se o resultado do julgamento coincidir com a expectativa popular, a Nação talvez se sinta aliviada com a idéia de que “a justiça” foi feita. Mas nos juristas e pessoas esclarecidas permanecerá a dúvida de sempre. A conclusão do julgamento dirá o que se decidiu ser “a verdade”, mas, como qualquer verdade decidida no voto, será uma mera convenção, um mero decidir acerca de possibilidades. Quatro votos de sete estabelecerão a verdade no mundo paralelo do Direito. Mas o que aconteceu definitivamente naquele triste fim de tarde para Isabella, isso permanecerá um mistério. A decisão judicial pode encerrar a questão jurídica sobre a verdade do processo, mas não a questão epistemológica sobre a verdade dos fatos. È nosso limite. O limite humano do conhecimento.

Haveria outra saída? Parece que não. A verdade estabelecida no processo é a melhor garantia contra erros e injustiças que conseguimos construir enquanto humanidade, mas ainda assim é precária e arriscada. É a solução funcional que a civilização encontrou pra lidar com o problema da imputação criminal, mas confundi-la com a verdade “verdadeira”, aí já é estar dando prova de outro fato: de que não se entendeu nada, da verdade ou do processo.

Bibliografia:
BLACKBURN, Simon. Truth: a guide for the perplexed. London: Oxford Press, 2005.
BOUDON, Raymond. O justo e o verdadeiro. Lisboa: Piaget, 1996
GUZMÁN, Nicolás. La verdad em El processo penal. Buenos Aires: Porto, 2006.
MUNOZ CONDE, Francisco. La busca de La verdad en el processo penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2000.


Elaborado em 23/03/2010
Postado por Sandro Sell

6 comentários:

  1. Temos a mídia nos bombardeando com informações contraditórias, carregadas de preconceitos e, na maioria das vezes, apresentadas de forma oportunista. No afã de nos aproximar da justiça, vamos assimilando várias "verdades", tentando entender e reconstituir mentalmente os fatos... Depois estarmos mergulhados nessa atmosfera sensacionalista, pergunto: Ainda existe algum cidadão comum que não tenha sido contaminado por esse pré-julgamento?

    ResponderExcluir
  2. Absolutamente brilhante. Tenho muita honra de ter sido sua aluna numa pós-graduação ministrada em 2003 de Processo Penal. Suas reflexões sempre me acompanharam como advogada e agora como magistrada. Não pare de escrever jamais.
    Um grande abraço.
    Ma.Thereza Gonçalves Pinto

    ResponderExcluir
  3. Como sempre falando tudo de forma racional e coerente.

    grande prof.

    ResponderExcluir
  4. Seu texto da idéia dos nós que um bom advogado pode dar na nossa cabeça. "Só sei que nada sei." Ou melhor, sei que se for acusado quero o senhor como advogado.

    ResponderExcluir
  5. Agora o promotor resolve aparecer na missa de 2 anos da morte da Isabela.
    Professor, não so da área do direito, mas posso presumir que essa não é uma prática coerente...?

    Abraço

    ResponderExcluir
  6. Muito! Embora os promotores tenham a difícil tarefa de acusar e fiscalizar o cumprimento da lei ao mesmo tempo, é um tanto low profile chegar a uma identificação pessoal com a vítima. Agora que já cumpriu seu dever - da forma como sua consciência o impeliu - seria adequado recolher-se, para que fique sinalizado que mesmo quando se acusa nesses casos, se faz por motivos profissionais e sociais. Se não, a craga afetiva de cada processo destruiria a paz de qualquer sujeito que atua na desgraça - prisão - da vida de alguém (advogado, professor ou juiz).
    Abraço, Sandro

    ResponderExcluir