quarta-feira, 24 de março de 2010

Identidade e estigma I

Nem sempre a pessoa tem como gerenciar sua imagem social. E, por vezes, a sociedade exige uma composição autobiográfica com ênfase na pior descrição que o indivíduo pode fazer de si mesmo. Isso ocorre com aqueles que são vítimas de estigmas. Estigma é, com efeito, uma atribuição negativa que inferioriza um indivíduo ou um grupo. Certas condições de nascimento (como cor da pele), de situação (como pobreza), de saúde (como ser aleijado), de moralidade (como ser criminoso) e de pertencimento (como ser cigano) são indutoras de estigmas. Elas facilitam a definição de seus portadores como decepcionantes exemplos de manifestação da condição humana.
         O efeito básico do estigma é impedir que seu possuidor seja visto para além da situação que, aos olhos dos outros, o inferioriza. Assim, portadores do vírus da AIDS não são vistos como pessoas doentes, mas como “aidéticos”, um termo que simplifica a identificação social do sujeito, tornando-o quase uma subespécie. É como se o estigma apagasse a complexidade de seu portador em benefício de uma identidade socialmente desvalorizada. Nas prisões, existem criminosos – estigma genérico – e não pessoas que cometeram, em momentos específicos de sua vida, crimes. Nos manicômios, existem loucos e não pessoas com complicações existenciais. Não existe vida para além do estigma. Assim, quando nos jornais lemos manchetes como “Prostituta é encontrada morta”, isso, quase sempre, significa que ninguém se ocupará da história da pessoa por sob o rótulo. Prostituta é resumo suficiente de tudo o que aquela pessoa foi na vida, assim como ser encontrada morta integra de forma coerente seu destino esperado.
            Na clássica obra Estigma (1988), Erving Goffman não deixa dúvidas de que os estigmatizados sabem o peso do estigma sobre o curso de suas vidas. Podem se sentir desacreditados. Isso ocorre quando sabem que seu estigma é conhecido. Como o aleijado que se sente apenas um aleijado. De outra parte, quando seu estigma é ocultável, sentem-se desacreditáveis. Vivem sob a paranóia de, a qualquer momento, virem a ser desqualificados. A estudante que, secretamente, é prostituta sabe que sua identidade de pessoa normal e aceita é provisória: a qualquer momento o estigma pode emergir como sinônimo de si própria.
           Mas a ambigüidade que é, tantas vezes, a regra social no trato com os estigmatizados também se apresenta. Ora os estigmatizados têm seus defeitos superdimensionados pela sociedade, ora são depositários de fantasiosas qualidades excepcionais. Escreve Goffman (Estigma, 1998:15):

“Tendemos a inferir uma série de imperfeições a partir da imperfeição original e, ao mesmo tempo, a imputar ao interessado alguns atributos desejáveis mas não desejados, freqüentemente de aspecto sobrenatural, tais como sexto sentido ou percepção.”

              Ciganos e cegos são, não raramente, considerados portadores de poderes de percepção, intuição e previsão aguçados. Ter esse acesso ao sobrenatural é característica não necessariamente negativa, mas, em geral, não desejável para as pessoas normais. O juiz de direito que, em noites específicas, atua como “pai-de-santo” fará de tudo para esconder essa sua possibilidade de acesso ao além. Eventuais possibilidades dessa natureza não combinam com seu status de pessoa respeitável. Mas, ao revés, são capazes de tornar mais intrigante e, mesmo, digna de algum respeito a existência dos estigmatizados.
              Um último efeito a ser salientado sobre as situações de estigma é que a posse de um facilita a aquisição de outro. Assim, quem é estigmatizado como sendo simplesmente “negro” ou “cigano” corre sério risco de ganhar outros estigmas como de “ladrão” ou “preguiçoso”. Para quem possui o estigma de aidético é facilmente visto também como homossexual. Para quem é apontada como prostituta não é difícil ser tida também como “mãe desnaturada” e desonesta. Um estigma atrai o outro, afundando seu portador em identificações sociais cada vez mais negativas.

Sandro Sell (do livro Comportamento social e anti-social humano).

Um comentário:

  1. A verdade é que nós precisamos para de rotular as pessoas. Não há nenhuma bondade nos rótulos, não há clemência, eles são frios, indolentes! Nesse aspecto, mesmo admirando o texto anterior (do professor Ruben Rockenbach) preciso contraria-lo: os rótulos são RUINS, e não existe “forma de pensar” para isso.

    Um Abraço,
    Paulini Sabbagh

    ResponderExcluir