A questão é outra: quando se tratamos de violência – fenômeno complexo e multiforme, que surge em suas mais diversas dimensões –, parece inafastável a compreensão do contexto subjacente a essa violência para melhor visualização do problema. O tema da violência de gênero é exemplo gritante dessa constatação.
Um passar de olhos – ou, melhor, de ouvidos – por muito da produção musical brasileira da década de 1970 e 1980 presta-se como bom exercício de visualização de muitos dos valores em nós incutidos ao longo dos anos e que passam desapercebidos como se fossem algo imutável ou “natural”. A referência, claro, é ao paradigma androcêntrico ou o paradigma do patriarcado, cujos efeitos aos poucos são percebidos e amiúde ainda negados.
Quando se fala em música popular brasileira, logo vem à mente um de seus representantes mais inspirados – seja por sua influência, seja pela beleza de sua poesia –, Vinícius de Moraes. É difícil negar a existência de uma redução da categoria do feminino. Na música “Samba da benção”, cuja composição Vinícius de Moraes compartilha com o igualmente brilhante Baden Powell, o poeta diz o seguinte:
Senão é como amar uma mulher só linda
E daí? Uma mulher tem que ter
Qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De se saber mulher Feita
apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão
Certo, mulher para amar, para sofrer pelo amor e para perdoar. O lirismo da letra contrasta com a dureza da percepção que o poeta afirma decorrer da tristeza de “se saber mulher”.
A leitura que ressalta o encontro do clássico samba com o molejo vanguardista que só a figura pessoal de Vinícius de Moraes realiza se repete em músicas de apreciação qualitativa, digamos, mais duvidosa. Sidney Magal é um cantor que se notabilizou na mesma década de 1970 como uma versão latina de Tom Jones: uma figura forte, imponente, sedutora e que procurava esbanjar sensualidade em suas apresentações. Suas músicas o apresentavam ora como um cigano, ora como um amante latino fervoroso. De temperamento “caliente”, parecia “natural” que Magal por vezes se valesse da violência para expressa seu excesso de paixão.
Numa versão brasileira da música de qualidade igualmente questionável do cantor argentino Cacho Castaña, Magal canta na música intitulada “Se te agarro com outro, te mato”:
[…]
Dizem que eu estou errado
Mas quem fala isto
É quem nunca amou
Posso até ser ciumento
Mas ninguém esquece
Tudo o que passou...
Se te agarro com outro
Te mato!
Te mando algumas flores
E depois escapo...
A versão original, de Cacho Castaña, era ainda mais explícita: em lugar de “mandar flores”, ele avisava que daria mesmo uma surra em “sua” mulher. É possível citar tantas outras músicas, especialmente as chamadas “cafonas” ou “bregas”, que mencionam a violência de gênero como um verdadeiro escape para paixões irrefreáveis. Aliás, o notável cantor Lindomar Castilho fez de sua biografia um desses exemplos de violência de gênero.
Não se cuida de fazer um juízo moral a respeito dessas músicas. “Samba da benção” é música que guarda passagens muito bonitas, como aquela em que Vinícius de Moraes pontua que “a vida é a arte do encontro”. Mesmo Sidney Magal tem seus méritos, ao procurar uma sonoridade latina num país que insiste em se manter distante da América em que se situa. O juízo aqui é de simples constatação. Essas músicas, a exemplo de tantas outras, são simplesmente normais. Não chocam – nem poderiam chocar – aqueles que se encontram inseridos dentro de um contexto em que a violência de gênero é normal.
Num contexto assim, é natural mesmo que a mulher seja “apenas perdão” e, se alguém disser que há algo errado, deve ser porque “nunca amou”.
Por: Antonio Suxberger
Postagem: Prof. Ruben Rocknebach
Link: http://www.idhid.org.br/index.php?menu=item&id=36
Nenhum comentário:
Postar um comentário