sexta-feira, 12 de março de 2010

Avatar e a inversão ideológica dos Direitos Humanos

 Embora a presença de um roteiro consistente não seja a tônica do filme “Avatar”, de James Cameron, a história contada pelos mais modernos efeitos especiais (até o momento) da história do cinema não deixa de trazer algumas reflexões, especialmente no campo dos direitos humanos.

Lançado no ano de 2009, o mais novo filme do canadense James Cameron – produtor, roteirista e diretor do filme – vem sendo pensado e produzido há quase uma década por seu criador. O produto final não é fruto da tecnologia atual: ao revés, foram desenvolvidas técnicas e máquinas específicas para permitir o espetáculo de imagens vivenciado a partir da “experiência sensorial” (segundo a exagerada expressão de Cameron, um dos mais bem sucedidos e premiados cineastas de nosso tempo) que o filme proporciona. Essa assertiva não deixa de ser curiosa, quando se pensa na relação entre práticas sociais e teorias no campo dos direitos humanos.

No filme, em meados do século XXII, no distante planeta de Pandora, os Na’vi, raça humanóide lá existente, são apresentados como um amálgama de nossas civilizações indígenas e africanas, seja pela interrelação cultivada com a natureza, seja pela compreensão de sua própria existência imersa em algo maior, ambiental e espiritualmente inseridos, na natureza que os circunda e permeia. Nesse mundo, uma empresa do nosso planeta constata a presença de um recurso chamado “unobtainium”, que pode vir a solucionar os problemas da matriz energética terráquea. A extração desse produto esbarra na franca e completa destruição do ecossistema de Pandora e, por conseqüência, da própria espécie Na’vi. Daí o mote do filme: um ex-militar é selecionado para interagir com os Na’vi por intermédio de seu avatar – um corpo oriundo da mescla genética entre os Na’vi e os humanos –, tudo para melhor permitir a ação humana destinada a retirar dali o valioso recurso energético. Inserido na cultura e vivência Na’vi, ele se volta à proteção deles, ainda que para isso tenha que enfrentar sua própria espécie de origem.

O protagonista é nosso herói: ao tomar consciência de uma cultura diversa da sua, em que a relação com o entorno limita e funda a própria existência, ele nos força a também refletir sobre nossa própria situação e como nós nos relacionamos com o nosso entorno. Não deixa de ser curioso que a produção seja norte-americana e que sua estréia mundial se dê nos últimos dias de realização da COP15 (United Nations Climate Change Conference), na cidade de Copenhague, Dinamarca. É que são os Estados Unidos o país que, se não o que mais tem refutado a aderir aos protocolos de preservação do clima, nos faz pensar nas graves conseqüências que a negativa de preocupação ambiental tem ensejado nesse início de século XXI.

A vilania do filme “Avatar”, representada pela exploração econômica a qualquer custo dos recursos naturais de um planeta, ainda que em detrimento de toda uma existência sustentável e culturalmente fundada nessa mesma natureza, contrasta com o selo de origem da mensagem que nos é entregue. Se o filme se presta como alerta, tal aferição só pode ser mesmo constatada enquanto vontade ou desejo de seus realizadores. Mas é interessante verificar que o filme, bem a sua maneira, nos traz uma reflexão curiosa sobre a temática dos direitos humanos.

Além das candentes questões atinentes ao multiculturalismo, que envolve a relação entre o protagonista e a sua “inserção” num universo cultural paradigmaticamente diverso daquele em que se encontrava, a temática do filme bem nos mostra a diferença existente entre a compreensão dos direitos humanos como ação política e como prática discursiva.

Com efeito, Franz Hinkelammert nos adverte que a história dos direitos humanos modernos é a história de sua inversão, que transforma as constantes violações desses direitos em um imperativo categórico da ação política (La inversión de los derechos humanos: el caso de John Locke. In: HERRERA FLORES, Joaquín (org.). El vuelo de Anteo: derechos humanos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000, p. 80 et seq.). Se as nações indígenas americanas ou mesmo os povos da África subsaariana viviam – e viviam bem – absolutamente indiferentes ao conceito (universalmente apresentado, mas contextualizadamente europeu-continental) de propriedade, só mesmo a construção do conceito de “estado natural”, a permitir a seguinte elaboração de uma respectiva ética, pretensamente justificou a idéia de que o homem fosse o juiz da natureza em que inserido. Curiosamente, esse direito de ser juiz da natureza em que inserido passa a ser compreendido como um direito natural. Essa tradição de discurso sobre direitos humanos, que nos coloca senhores daquilo que nos envolve, não deriva de uma prática política, mas substancia uma ação política em si. E essa constatação faz-se necessária sem rodeios: claro, pois não apenas justifica um contexto de apropriação do estado natural de coisas, mas estabiliza tal contexto. Em verdade, passa a apresentá-lo como um “dado” e, por conseguinte, imutável.

Verdadeiramente, ao se retirar os direitos desses povos que então se viam inseridos e bem colocados em suas relações com o entorno, substituímos tais direitos por direitos de um sistema por nós construído. E tal verificação só ganha contorno de realidade quando lançada em nossa retina por meio dos espetaculares efeitos especiais do filme “Avatar”. Soa irônico, ou mesmo risível, que tenhamos que nos enxergar – com nossas mazelas e fixações culturalmente impostas, que insistem em assumir nossos construídos como se fossem dados imutáveis – em seres azuis, de quase três metros de altura, criados por computação gráfica. Ao final do filme, fica a dúvida cruel no espectador: o encanto com os Na’vi dá-se em razão do colorido do mundo deles apresentado com a riqueza de efeitos que só mesmo uma produção multimilionária proporciona ou porque nos vemos, como num espelho turvo e alquebrado, em cada um dos canalhas da empresa que busca a extração do valioso material energético de Pandora?

Seja lá qual for a razão da construção dessa identidade, tal como se dá na relação entre a tecnologia e a produção do filme “Avatar”, aqui também as teorias só terão valia se se prestarem a justificar ou criar novas práticas sociais de acordo com uma orientação eticamente dirigida a um mundo mais igual. E convém fixar o lugar dessas teorias: são apenas teorias, porque, se elas não se prestarem a nos aproximar um pouco mais de Pandora, que então criemos outras, em lugar de simplesmente fecharmos os olhos para a nossa realidade e nossos espelhos tortos e alquebrados.

Por: Antonio Suxberger
Postagem: Prof. Ruben Rockenbach
Link: http://www.idhid.org.br/index.php?menu=item&id=43

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