domingo, 14 de março de 2010

Consequências jurídicas de ser filho de Deus

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR (ESSE SIM É DOUTOR!) JUIZ JASON DE LIMA E SILVA DA 2ª VARA KAFKIANA DE PRAGA.


Z!, brasileiro, solteiro, artista da fome, sem número do RG e sem CPF, residente e domiciliado na Rua de nome Rua – Planeta Terra -, vem propor a presente ação em face de Deus, situado (aliás, muito bem situado) no céu, pelos motivos abaixo:


Por ser, segundo a bíblia, filho de Deus, Z!, agora maior de 18 anos, ou seja, absolutamente capaz, pretende processar o suposto pai, uma vez que não houve prescrição (Artigo 197 do Código Civil), por abandono intelectual e material quando Z! ainda era uma indefesa criança em fase de crescimento.

Amparado pelo dispositivo legal da Magna Carta – Art. 229 – no que concerne aos seus direitos, Z! pretende ser ressarcido pelo o que lhe fora assegurado no artigo anteriormente citado:


“Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”

Quando ainda não estava metamorfoseado em um adulto, o autor viveu em vários lugares e, ao mesmo tempo, em nenhum lugar. Morou embaixo de pontes, ao lado de viadutos, em meio a praças. Esquecido pelo criador do céu e da terra. Oportunidade, assim como a esperança, era uma palavra que nunca ouvira falar. Saudade? Também não a tinha. Não são somente os norte-americanos que não a entendem, Z! também não a entendia. Também não era para menos. Como o requerente podia senti-la se não havia alguém que se preocupasse com ele?

A sociedade era outro elemento que não fazia parte de sua vida. Vivia à margem dela ou, como diz o dito popular, a Deus dará. Não teve estudo, tampouco aprendeu a ler. Ficava fascinado pela imagem do pequeno príncipe, mas Exupéry era-lhe inalcançável. Havia uma barreira social imensa. Um detalhe que, ao contrário da música de Roberto Carlos, não era tão pequeno assim.

Não brincava, brigava. Não dormia, hibernava. Seu passatempo era esperar passar o tempo. Sub-mundo era um lugar de luxo para alguém que, como ele, não tinha um mundo. Talvez viver fosse de longe a droga mais forte que já provara. O efeito dela era contínuo, ininterrupto. Nem precisou chegar aos 100, 19 anos de solidão já bastavam para saber que nada sabia, nada compreendia do sentido de sua existência. Não lia Camus, mas talvez soubesse, desde cedo, que era um estrangeiro. Indiferente aos padrões sociais que regiam. Incompreendido como Franz Kafka.

Pela manhã não via jornal, não tomava seu leite, não comia sua torrada. Dividia tristes momentos com o seu despedaçado eu. Ele nem sabia que tinha um eu interior. Descobriu ouvindo duas senhoras discutindo sobre isso na parada de ônibus. Tinha uma casa muito engraçada: não tinha teto, não tinha nada (familiar, não?). Feita de papelão, não abafava o barulho dos vizinhos. Berros, gritos, chiados, miados, latidos. Uma vizinhança e tanto.

Um belo dia foi abordado por dois missionários evangélicos. Disseram-lhe palavras encantadoras; que existia um lugar em que ele se sentiria em casa, que preencheria seu vazio existencial com a sapiência de um tal Deus. Vá conosco, sem compromisso - afirmaram a dupla. E assim nosso protagonista foi. De um problema social, tornou-se, pós conversão cristã, aprendiz da bíblia. Aprendeu a ler, a escrever, a se portar de modo, moralmente falando, “normal”. Afirmava conhecer, de fato, Ele.

Ao estudar incessantemente os ensinamentos bíblicos, descobriu que era filho de Deus. Agora entendia o porquê de Sófocles, grande tragediógrafo grego, falar que quanto maior a ignorância, maior a felicidade. Pensou como uma pessoa tem a ousadia de gerar um ser e, depois de um processo complexo, deixá-lo sofrer, sentir fome, frio, sem – ao menos – uma justificativa plausível. Aliás, não existe uma justificativa que explique o abandono. Abandono intelectual, material e, além desses assegurados pelo ECA (Estatuto da Criança e do adolescente) bem como pela Constituição Federal, há o abandono sentimental. O afeto, o carinho, o cuidado etc. Não condiz, com efeito, com o discurso cristão. Onde está, nesse caso concreto, o amor ao próximo? E eu que achava que eram somente as leis é que não saiam do papel.

Angustiado, Z!, ciente de seus direitos, resolveu procurar os meios legais para resolver a situação. Acreditou que dessa maneira fosse poupado da demagogia social que lhe fora ensinada na vida religiosa e, por consequência, fosse encerrada a questão entre Pai e filho. Não é por dinheiro ou vingança, é uma questão de justiça. O autor tinha, na infância, um direito assegurado que não fora cumprido. Agora busca nas vias judiciais o ressarcimento do dano. Assim, o requerente procurou-me.


DESSE MODO,

eu, anjo da luz, na condição de advogado do autor Z!, peço, com todas as honras, que V. Exa. determine LIMINARMENTE: 

A apreensão de todos livros sagrados que foram distribuídos e faça com que DEUS os reedite. Faça com que ele exclua, dessa maneira, os sete pecados capitais à medida em que eles não foram socialmente aceitáveis, excetuando os fanáticos que, talvez, cumpriram as ordens. Além do mais, o pedido inicial se faz necessário, ao passo que, como se sabe, nenhuma sanção restitui o que fora anteriormente perdido, mas apenas apazigua os ânimos mediante a justiça que será, assim espero, concretizada. Nenhuma fortuna material substitui os valores que foram, no caso de Z!, deixados de lado. O vazio que o corrói até hoje não pode ser restituído por “x” salários mínimos. É uma questão unicamente pessoal, intrínseca de cada ser. Continuando a proposta, caso o réu não considere de bom grado o pedido inicial de reeditar as escrituras, é dada a idéia que ele faça, de próprio punho, um documento alegando que Ele não existe. Parece, de inopino, contraditório, mas veja que se para fins legais Ele não existe, nenhum crime pode ser imputado a Ele. Com isso, ficaria provada a inocência do requerido.


Assim, requer que Vossa Excelência determine a citação do réu para comparecer à audiência de conciliação a ser designada e, caso não haja acordo, possa oferecer sua contestação, sob pena de serem considerados verdadeiros os fatos alegados.

Nesses termos, pede-se, então, o deferimento

Florianópolis, 9 de novembro do ano de 2009

Anjo da luz

Nº da Ordem dos Advogados da República Tcheca: 2012



Elaborado pelo Luccas Neves (um talentoso ex-aluno). Ele salienta que a parte do pedido da ação teve a colaboração do professor Jason de Lima e Silva (que, além de literato é, ao que parece, juiz na República Tcheca). Luccas escreve regularmente no blog:
  http://www.luccasneves.blogspot.com/

Postado por Prof. Sandro Sell

Um comentário:

  1. Anjo de Luz é como Lúcifer era conhecido no Céu... Isso antes de ser chamado de Satanás. Seria coincidência? Eu tenho esperança!

    www.esperanca.com.br

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