segunda-feira, 22 de agosto de 2011

REPRESSÃO + DROGAS = NARCOEMPRESA ?

Colegas blogueiros, a partir da (re)leitura da obra Capitalismo Gângster: quem são os verdadeiros agentes do crime organizado mundial, do autor Michael Woodiwiss (1), propus aos meus alunos de direito penal uma reflexão acerca dos diversos fatores que cercam as políticas criminais de controle da disseminação, consumo e comércio internacional e mesmo caseiro de drogas ilícitas. Na exposição sobre as políticas criminais de enfrentamento deste tema, encaminhamos como mote provocativo para debate os seguintes questionamentos: seria correto concebermos as políticas repressivas penais de controle do consumo e tráfico ilícito de drogas não como instrumentos de controle de riscos ou redução de tal atividade, mas como ingrediente fundamental de fomento da narcoempresa? Ou então, qual é a motivação que anima tais políticas de absoluta repressão penal, de cunho meramente policialesco e punitivista ?

Para alimentar a reflexão, iniciamos apresentando um rápido “rastreamento” histórico e depois introduzimos alguns dados obtidos a partir do resultado de tais políticas.

Woodiwiss revela que foi no governo Nixon que se inaugurou uma primeira política de “guerra contra as drogas”. Durante todo o tempo que passou na Casa Branca, Nixon transformou o “combate às drogas” em uma de suas principais prioridades. Para programar sua política, Nixon valeu-se da manipulação midiática para incutir o temor às famílias norte-americanas e convencê-las da incapacidade de seus filhos de resistir às tentações ao uso de drogas ilícitas. Nixon alimentou a ilusão de que era possível alcançar um país livre de drogas.(2)

Aliás, Nixon foi o primeiro presidente norte-americano a fazer um esforço concentrado no sentido da internacionalização do combate às drogas, gerando, como sabemos, consequências indesejáveis para muitos países e efeitos catastróficos para alguns, como a Colômbia e o Afeganistão.

Em setembro de 1969, a política antidrogas lançada por Nixon (e que permanece até os dias de hoje) foi retratada na seguinte mensagem enviada a um grupo de agentes públicos formado em seu governo para o enfrentamento desse desafio:

“O presidente está convencido de que o problema do vício de narcóticos nos Estados Unidos chegou a proporções que constituem um perigo para nossa estabilidade nacional. A maior parte dos narcóticos são cultivados e transformados em países estrangeiros e contrabandeados para os Estados Unidos; isso é particularmente verdadeiro em relação à heroína. Nessas circunstâncias, o presidente considera que qualquer país que facilite o tráfico internacional de heroína, ou que contribua para ele de qualquer forma, está cometendo um ato hostil aos Estados Unidos”. (3)

A partir dali, foram intensificados os esforços para convencer outros países, “pela força ou mediante suborno” (Woodiwiss), a aceitar um regime global de controle de drogas baseado nos Estados Unidos.

Contudo, esse esforço, além de não impedir que os norte-americanos que desejassem drogas pudessem comprá-la, foi acompanhado por uma onda de violência e corrupção muito mais ampla do que tudo o que ocorreu durante as chamadas “guerras de contrabandistas” na década de 1920. (4)

A política norte-americana antidrogas nos dias de hoje, a partir de Nixon, vem se baseando em grande parte no encarceramento em massa dos criminosos mais pobres, em geral, e dos envolvidos num comércio crescente de drogas, em particular. Verificou-se que a superpopulação dos presídios e a detenção de centenas de milhares de jovens junto com criminosos profissionais somente resultou na criação de uma quantidade muitíssimo maior de redes de tráfico de drogas do que as que foram desbaratadas. Os problemas decorrentes do crime organizado no setor de drogas nos Estados Unidos vêm se agravando, mas ainda assim o país vem propagando ao resto do mundo que siga seu exemplo na questão do controle das drogas. (5)

Um exemplo devastador desta política nixoniana foi observada na Grã-Bretanha. Adotando um programa distinto do norte-americano, a Grã-Bretanha, a partir da primeira parte do séc. XX, optou por uma política que não se baseava numa proibição absoluta ao consumo de drogas, mas numa estratégia de contenção de riscos, atuando especificamente sobre o usuário e o dependente. Hospitais, clínicas de tratamento de dependentes e programas educativos que visavam prevenir infecções, contaminações e overdoses com o uso de drogas eram métodos investidos pelo governo britânico.

O sistema era imperfeito, mas o mais importante é que ajudava a manter reduzido e pouco lucrativo o mercado negro de drogas, em comparação com o vasto comércio clandestino nos Estados Unidos.

Entretanto, tal política foi superada pela adoção da beligerância norte-americana. Segundo Woodiwiss, em novembro de 2004, um relatório do centro de monitoramento de drogas da União Europeia colocou a Grã-Bretanha no topo da lista de uso de cocaína e maconha do continente. O resultado deste novo paradigma foi o surgimento de barões e figurões das drogas e até mesmo casos de corrupção foram identificados, com os policiais britânicos envolvidos umbilicalmente ao tráfico de drogas. A principal estratégia de atuação proposta pelos políticos foi a repressão progressivamente mais intensa e agressiva, seguindo o modelo norte-americano de práticas mais invasivas e penas mais severas para os condenados. Seguindo ao incremento de penas, um número maior de policiais foi transferido para os setores que lidavam com drogas, agências de inteligência foram criadas, disque-denúncias foram disponibilizadas para informantes e infiltrados e houve promessas de novos presídios. (6)

Em realidade, esta estratégia de força e recrudescimento penal tem sido adotada pela maior potência mundial há mais de 50 anos. E o que tem obtido? Como vimos, o incremento do produto financeiro de tal atividade; o aumento do consumo; e a disseminação de drogas populares e letais como o crack.

O interessante é que apesar do investimento em bilhões e bilhões de dólares por todos estes anos, os EUA apenas conseguiram “conter” cerca de 10% ou no máximo 15% de todo o montante de drogas introduzido em seu próprio território.

Todo o “esforço” americano, reproduzido em território tupiniquim por nossos órgãos e instituições de repressão penal, não impediu que o tráfico de drogas se mantivesse no patamar de 2º item do comércio mundial, superando até o do petróleo, só sendo vencido pelo das armas.

Conforme Woodiwiss (7), já no final da década de 20, Arnold Rothstein, clássico gângster americano, apelidado como o “Grande Financista” do crime, foi talvez o primeiro americano a perceber a lucratividade potencial da proibição do jogo, do álcool e das drogas, tanto por meio do envolvimento direto quanto do patrocínio de empresas que abasteciam essas mercadorias e serviços. (8).

Arnold estava certo. Segundo Luis Nassif, centenas de bilhões de dólares (estipula-se informalmente que 1 trilhão) encontram-se em “circulação” em paraísos fiscais espalhados pelo planeta. Os EUA reciclam um montante que alcança algo em torno de US$ 500 bilhões do negócio. Toda esta circulação de riqueza converte os EUA no país onde a narcoeconomia tem uma importância vital, ocupando, aproximadamente, 5% do PIB e se convertendo no setor mais importante da economia norte-americana. (9)

No Afeganistão, a produção de drogas foi retomada depois da invasão militar dos EUA em 2001. Após a invasão, o país superou a Colômbia e se tornou, naquele período, o maior produtor mundial de drogas (principalmente ópio e heroína) e, em 2003, o negócio faturou 2,3 bilhões de dólares, mais da metade do PIB do país

O insucesso da militarização também pode ser medido pela constatação de que o principal país consumidor de drogas ilícitas é o próprio EUA, seguido pelo Brasil, que ocupa a desonrosa “vice-liderança”, apesar de todo o aparato bélico e policialesco que sempre nortearam a política de “combate” às drogas ilícitas destes países.

Outras cifras poderão auxiliar na análise da equação que propusemos.

Em uma aparente contradição com todo este aparato militar e com o discurso de erradicação do consumo e comércio de drogas ilícitas, a economia norte-americana obteve (e ainda vem obtendo) lucros estimados em bilhões de dólares com a venda de parte importante dos componentes químicos destinados ao refinamento da cocaína e na produção de drogas sintéticas. Ademais, as companhias químicas norte-americanas, provedoras destes insumos, tem recebido a proteção do próprio governo americano. Segundo noticiou o The Miami Herald, edição de 8 de fevereiro de 1990, na exportação de produtos químicos para fabricação da PBC (Pasta de Base da Cocaína), já se destacavam empresas como a Shell e a Mobil Oil. (10)

Mas há um setor fundamental no processo de disseminação do narcotráfico e no financiamento de tal atividade: o setor bancário.

Bancos espalhados por todo o mundo, e entre eles, por óbvio, bancos americanos, verdadeiros paraísos fiscais, se dedicam ao “refinamento” do dinheiro ilícito obtido com tal atividade. Ou seja, no processo de lavagem (ou branqueamento) do capital oriundo do tráfico, o sistema bancário tem papel fundamental nesta operação.

Como observa Woodiwiss (11), esta política contribuiu para a criação de uma nova raça de “cleptocratas” e sofisticados criminosos empresariais internacionais. Lembra o autor que Suharto na Indonésia, Marcos nas Filipinas e Mobutu no Congo assumiram a liderança, acumulando bilhões de dólares, essencialmente por meio da pilhagem de seus povos e com a cumplicidade dos bancos e instituições financeiras norte-americanas e ocidentais. Na década de 1980, o Banco de Crédito e Comércio Internacional (BCCI) ajudou não apenas estes “cleptocratas”, mas também traficantes de armas e de drogas, e até terroristas, a escaparem com o produto de seus crimes. Em 1991 os indícios mostraram que as práticas bancárias do BCCI simplesmente refletiam uma cultura insidiosa de criminalidade empresarial.

A partir do início da década de 1980, a rede norte-americana do BCCI passou a servir a comerciantes de drogas, mercadores de armas e seus esquemas de lavagem de dinheiro, assim como pessoas envolvidas na evasão de capitais do Terceiro Mundo. (12)

Ademais, as principais instituições financeiras globais, especialmente o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, pouco fizeram para combater as oportunidades de criminalidade organizada no setor. O FMI, inclusive, continuou a fazer empréstimos a Marcos, Suharto e Mobutu e a estimular outras instituições a fazer o mesmo, muito depois que a pilhagem a que eles se entregaram se tornou de conhecimento público. (13)

Conforme o prof. Coggiola (14), em todo este período de boom financeiro advindo com o comércio espúrio de drogas, os bancos criaram paraísos fiscais nos quais se lavava, diariamente e à vista de todos, milhões de dólares. Essa associação criminosa, que envolve banqueiros, se utiliza de um dos mecanismos típicos do sistema financeiro, adotado como instrumento de blindagem de suas operações financeiras e concebido como um princípio intocável: o sigilo bancário. Trata-se de um “pilar da propriedade privada, na confidencialidade dos negócios e na livre disponibilidade do capital” (Coggiola).

A “narcoeconomia”, longe de ser um submundo alheio à norma capitalista, está rigorosamente organizado de acordo com os parâmetros da “economia de mercado”. Os objetivos destas organizações criminosas dedicadas ao tráfico de drogas, como a captura de mercados, monopólio de preços e domínio sobre os segmentos mais lucrativos, são metas tipicamente capitalistas (Coggiola).

Calcula-se que 90% dos lucros do narcotráfico sejam recebidos pelos grandes bancos, por depósitos dos produtores e dos intermediários, e por comissões pela “lavagem” do dinheiro. Depois de caminhar pelas diversas etapas de “refinamento” do capital advindo do comércio espúrio, os narcoempresários investem cerca de 45% em propriedades urbanas e rurais, 20% em gado, 15% em comércio e 10% na construção e no lazer. (15)

Enquanto isso, a distribuição varejista, a dos traficantes dos morros e periferias do Brasil, é a raia mais miúda desse business, não recebendo mais que uma parcela mínima desses 10%. O maior lucro do empreendimento, 90% do total, é dos bancos e seus "respeitáveis" banqueiros e dos estabelecimentos privados empregados nas diversas etapas de lavagem do capital ilícito.

Entretanto, historicamente nossas instituições e órgãos públicos têm dirigido todo o seu “arsenal” investigativo e repressivo justamente a este “grupo” que manipula este percentual ínfimo da economia gerada pelo comércio ilícito.

Enfim, com base nesses dados creio que já podemos encontrar alguns subsídios para responder a questão proposta no início; já teríamos como afirmar se a conjunção repressão + drogas corresponderia a narcoempresa.

Estou certo que tais dados, como tantos outros que cercam a política repressiva e punitivista como única resposta ao comércio e consumo de drogas, nos permite refletir sobre uma necessária mudança de paradigma.

De maneira geral, enquanto a criminalidade empresarial e financeira, sobretudo de lavagem de dinheiro, for considerada secundária em relação ao crime organizado e “enquanto a criminalidade política em todo o mundo for defendida em termos de realpolitik, a economia política global estará continuamente vulnerável à atividade criminosa”. (16)

Ou seja, enquanto o foco das políticas criminais públicas e a atividade dos órgãos e instituições oficiais continuarem a “deitar-se” sobre a criminalidade varejista, dedicando pouca atenção (ou nenhuma) às políticas de contenção de riscos, sobretudo ao investimento em métodos de prevenção, acompanhamento e tratamento do dependente e usuário de drogas; e ao papel internacional e sistemático dos bancos estrangeiros na ascensão dos “cleptocratas” e na lavagem de seu capital ilícito por meio do sistema global de paraísos fiscais, continuaremos provendo e retroalimentando a equação proposta.

Notas

(1) WOODIWISS, Michael. Capitalismo gângster: quem são os verdadeiros agentes do crime organizado mundial. Tradução de C. E. De Andrade, Rio de Ujaneiro: Ediouro, 2007.
(2) WOODIWISS, p. 07.
(3) Woodiwiss, p. 182.
(4) Woodiwiss, p. 21.
(5) Woodiwiss, pgs. 22/23.
(6) Woodiwiss, p. 24.
(7) Woodiwiss, p. 07.
(8) conforme o Manchester Guardian, em 1928, extraído do livro Capitalismo Gângster, p. 17.
(9) Portal Luis Nassif: construindo conhecimento, em http://blogln.ning.com/forum/topics/drogas-ilicitas-tentando?commentId=2189391%3AComment%3A231356, de novembro de 2009, acesso em 11/04/2010.
(10) Osvaldo Coggiola, O tráfico internacional de drogas e a influência do capitalismo, Revista Adusp, 1996, pp. 44-51, em http://www.adusp.org.br/revista/07/r07a07.pdf, acesso em 08/04/2010.
(11) Woodiwiss, p. 233.
(12) Woodiwiss, p. 233.
(13) Woodiwiss, pp. 25/26.
(14) Coggiola, pp. 44-51.
(15) Ney Jansen, Drogas, imperialismo e luta de classes, artigo, revista Urutagua, n.12, 2007, Universidade Estadual de Maringá (PR); e Drogas e capitalismo - Quem são os verdadeiros criminosos, de Rosana Bond, em http://www.kaosenlared.net/noticia/drogas-capitalismo-quem-so-os-verdadeiros-criminosos, acesso em 06/04/2010.
(16) Woodiwiss, p. 26.
(17) Woodiwiss, p. 26.

Postado por Jádel da Silva Júnior, Cesusc, Direito Penal.m(15/04/2010)

5 comentários:

  1. Que bela estréia no blog, meu amigo...
    A provocação nesses termos é irresistível! Quanto vale um papelote de cocaína ou um cigarro de maconha? Melhor não responder de pronto (a não ser que você seja analista da polícia), pois possuir essa informação atualizada é indício de seu pacto com o satã de nossos tempos. E os homens da narco-inquisição são piores que bruxos na transformação de leves suspeitas em prova perpétua de autoria de crime equivalente a hediondo... Então refaço a pergunta: quanto valeria essas mercadorias se não houvesse a repressão? Lembre que maconha se planta até em teto de casa, vaso de consultório, lixeira de escritório... e que “laboratório” para refino de cocaína se faz em qualquer mata com um toldo de plástico e um quite encontrável em salões de beleza. O que valoriza então as drogas? As “mega-apreensões” festejadas pela polícia (como se as drogas fossem escassas como urânio ou diamante!), o custo-prisão, o custo-corrupção, o custo-favelização e o custo etigmatização de seus canais distributivos. Sem repressão não haveria narconegócio? É certo que não. Haveria pessoas que consumiriam drogas e outras que abusariam de seu uso (como o álcool), mas nem eu nem meus filhos correriam o risco de levar um tiro por passarem inadvertidamente por um “território em disputa pelo tráfico”, (assim como não corremos o risco de entrar num território dominado pela disputa por venda de cachaça). A repressão falhou e armou o tráfico. O fim dela na acabaria com o “problema das drogas”, mas ao menos permitiria que o Estado começasse a tratar do problema ao invés de fomentá-lo.
    Abraço, Sandro Sell

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  2. Nunca tinha visto uma análise assim. Parabéns professor Jadel.
    Luana de Capistrano Silva, Cesusc

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  3. Também gostei do texto.
    Paulo

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  4. Eu também nunca tinha visto uma análise nesse sentido!
    E pensar que tem gente na favela do Rio de Janeiro achando que é o "dono da boca..."

    Parabéns!

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  5. Muito louvável a sua postagem e o seu ponto de vista em relação ao narcotráfico.
    O consumo de drogas acarreta importantes conseqüências sociais: crime, violência, corrupção, marginalidade, entre outros. Por isso a maioria dos países do mundo proíbe a produção, distribuição e venda destas substâncias. Conseqüentemente, formou-se um mercado ilegal de entorpecentes e psicotrópicos, hoje o narcotráfico tomou conta de muitos jovens em baladas e em festas. Até mesmo a alta classe social apresenta usuários, embora algumas pessoas ainda tenham o preconceito de que só pessoas de baixa renda, como moradores de favela, são usuários. Liberar ou acabar, qual a melhor saída, temos que tomar uma decisão sem culpa ou arrependimentos depois, isso é bem complicado e difícil porém não impossível.
    Ana Cléia. Uma amiga!

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