A sexta de Luigi
Noite de sexta-feira, 23 horas. Luigi dirige seu carro enquanto pensa na namorada que o espera para irem juntos ao show do Zeca Baleiro. Namoram há apenas duas semanas e ele acha que é melhor não se atrasar. “Vou ser um namorado perfeito!”. Idéia compreensível, já que Luigi tem apenas 19 anos e ainda não sabe que as pessoas tendem a se apaixonar preferencialmente por quem não as leva muito a sério. Ingênuo, estudante de Direito, ambientalista e apaixonado. Um tipo falador demais para que você o considerasse agradável, mas, definitivamente, alguém que não se espera ver como réu criminal. Mas essa última condição vai acabar em minutos. Você vai ver.
Luigi dirige seu carro 20 km acima da velocidade permitida. É um Audi A3 prata, em bom estado, mas, de qualquer forma, uma escolha pouco coerente com suas roupas de ambientalista alternativo. Considerando a velocidade usual da rodovia, ele até que vai devagar, pois, segundo dados da própria polícia local, os condutores costumam, nesse trecho, exceder, em média, 33 Km/h o limite legalmente imposto. Então, ele estava 20 km acima da lei e cerca de 13 abaixo do homem médio que infestava a rodovia.
Correr acima do permitido, uma prática tão reiterada, tão conforme os usos e costumes locais que aquele que tentava seguir a velocidade-padrão sentia-se atrapalhando o trânsito. Parecia mesmo um caso de costume jurídico contra-legem. Uma prática social que apesar de contrariar a lei, por hábito duradouro, passa a ser tida pelos membros de uma comunidade (no caso, a comunidade dos condutores daquela rodovia) como um dever: dever de não importunar os demais, travando o trânsito.
Um costume assim, afora as respeitáveis opiniões divergentes, pode ser tido como fonte de direito para ressintonizar a lei e a sociedade. Algo semelhante ao que ocorre quando os urbanistas nos forçam a utilizar um caminho bonito, mas cheio de curvas para atravessar a praça que nos leva ao mercado e nós, transeuntes, em conjunto, criamos um mais curto, ignorando a advertência do “não pise na grama”. Um dia chega um novo urbanista e simplesmente ladrilha o caminho traçado pelo costume, enquanto transfere a grama para o lugar bonito, que a maioria não quis trilhar. Trata-se de uma forma de combater o ilícito de traz para frente: não se muda o infrator, redesenha-se a norma. (Do ponto de vista formal, eis a única forma indiscutivelmente adequada de pôr fim ao crime).
Poder-se-ia fazer o mesmo na dita rodovia em que naquela noite enluarada trafegava Luigi? Do ponto de vista administrativo (que inclui as multas policiais), prefiro não opinar (ne sutor ultra crepidam). Mas do ponto de vista penal, dentro da tese de que aquilo que não confronta os direitos e garantias fundamentais de modo explícito, e que é prática corrente pelo senso comum moral de uma comunidade, não deve ser crime, parece que sim. Algo polêmico, é claro, mas é de polêmicas, além do recolhimento de custas e emolumentos, que vive o Direito. Então não se escandalize com as posições divergentes. Escandalizar-se, a propósito, é coisa para virgens, velhinhas e velhacos; só os fortes de caráter aceitam a divergência de opinião, sem praguejar, chamar a censura ou se referir ao passado, “quando havia os verdadeiros valores”!
“Sim, mas o que aconteceu com Luigi?!”
Espere, já vou contar, mas antes preciso falar um pouquinho mais acerca da conduta do nosso apaixonado protagonista.
É que enquanto manejava seu carro a 100 km/h, ele tinha uma conduta imprudente. Ele excedia em 20 km aquilo que a lei esperava dele na pista. Algo que se tivesse muita sorte não lhe renderia sequer uma multa (por ausência de fiscalização), se tivesse meia sorte lhe renderia uma multa, mas não um inquérito policial; agora se acaso tivesse muito azar, aqueles 20 km fariam dele um assassino. Bastaria que alguém cruzasse a sua frente na rodovia, ele tentasse frear, e o fato de ele estar míseros 20 km/h acima da velocidade permitida tivesse sido relevante para a impossibilidade de parar o veículo a tempo. Luigi foi muito azarado naquela noite.
Luigi dirige seu carro 20 km acima da velocidade permitida. É um Audi A3 prata, em bom estado, mas, de qualquer forma, uma escolha pouco coerente com suas roupas de ambientalista alternativo. Considerando a velocidade usual da rodovia, ele até que vai devagar, pois, segundo dados da própria polícia local, os condutores costumam, nesse trecho, exceder, em média, 33 Km/h o limite legalmente imposto. Então, ele estava 20 km acima da lei e cerca de 13 abaixo do homem médio que infestava a rodovia.
Correr acima do permitido, uma prática tão reiterada, tão conforme os usos e costumes locais que aquele que tentava seguir a velocidade-padrão sentia-se atrapalhando o trânsito. Parecia mesmo um caso de costume jurídico contra-legem. Uma prática social que apesar de contrariar a lei, por hábito duradouro, passa a ser tida pelos membros de uma comunidade (no caso, a comunidade dos condutores daquela rodovia) como um dever: dever de não importunar os demais, travando o trânsito.
Um costume assim, afora as respeitáveis opiniões divergentes, pode ser tido como fonte de direito para ressintonizar a lei e a sociedade. Algo semelhante ao que ocorre quando os urbanistas nos forçam a utilizar um caminho bonito, mas cheio de curvas para atravessar a praça que nos leva ao mercado e nós, transeuntes, em conjunto, criamos um mais curto, ignorando a advertência do “não pise na grama”. Um dia chega um novo urbanista e simplesmente ladrilha o caminho traçado pelo costume, enquanto transfere a grama para o lugar bonito, que a maioria não quis trilhar. Trata-se de uma forma de combater o ilícito de traz para frente: não se muda o infrator, redesenha-se a norma. (Do ponto de vista formal, eis a única forma indiscutivelmente adequada de pôr fim ao crime).
Poder-se-ia fazer o mesmo na dita rodovia em que naquela noite enluarada trafegava Luigi? Do ponto de vista administrativo (que inclui as multas policiais), prefiro não opinar (ne sutor ultra crepidam). Mas do ponto de vista penal, dentro da tese de que aquilo que não confronta os direitos e garantias fundamentais de modo explícito, e que é prática corrente pelo senso comum moral de uma comunidade, não deve ser crime, parece que sim. Algo polêmico, é claro, mas é de polêmicas, além do recolhimento de custas e emolumentos, que vive o Direito. Então não se escandalize com as posições divergentes. Escandalizar-se, a propósito, é coisa para virgens, velhinhas e velhacos; só os fortes de caráter aceitam a divergência de opinião, sem praguejar, chamar a censura ou se referir ao passado, “quando havia os verdadeiros valores”!
“Sim, mas o que aconteceu com Luigi?!”
Espere, já vou contar, mas antes preciso falar um pouquinho mais acerca da conduta do nosso apaixonado protagonista.
É que enquanto manejava seu carro a 100 km/h, ele tinha uma conduta imprudente. Ele excedia em 20 km aquilo que a lei esperava dele na pista. Algo que se tivesse muita sorte não lhe renderia sequer uma multa (por ausência de fiscalização), se tivesse meia sorte lhe renderia uma multa, mas não um inquérito policial; agora se acaso tivesse muito azar, aqueles 20 km fariam dele um assassino. Bastaria que alguém cruzasse a sua frente na rodovia, ele tentasse frear, e o fato de ele estar míseros 20 km/h acima da velocidade permitida tivesse sido relevante para a impossibilidade de parar o veículo a tempo. Luigi foi muito azarado naquela noite.
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Homem-aranha
Eram 23 horas e 10 minutos. Pepito, 9 anos, vinha pela beirada da rodovia ao lado de sua mãe, D. Flávia, e seu irmão, Juan, de 11 anos. Este segurava um boneco do homem aranha, jogando-o para cima, aparando-o em seguida, apenas para ter o prazer de jogá-lo novamente. Pepito queria jogar também, já que o boneco era dos dois, mas a mãe já decidira que: “Juan foi quem trouxe o boneco, assim só quando ele arriar, você pode brincar com ele.” Desnecessário dizer que Pepito faria uma interpretação ampla do verbo “arriar”, condição essencial para chegar sua vez. E assim que Juan foi jogar mais uma vez o boneco, Pepito o empurrou, o lançamento saiu torto e ambos os meninos se precipitaram na direção da pista para pegá-lo. Vendo o carro de Luigi que se aproximava na sua direção, Juan parou enquanto Pepito, o desafiante, deu mais um passo, entrando na faixa de rolamento. Um grito da mãe, uma marca de freada brusca do Audi e uma criança de apenas 9 anos morta numa disputa por um herói que não podia salvar ninguém.
Se a velocidade permitida fosse 20 km a mais – o que diziam ser tecnicamente adequado -, a infelicidade de D. Flávia não se alteraria, mas Luigi não teria cometido um crime (pois aí a diferença entre não conseguir parar o carro a 100 km/h mas consegui-lo se tivesse a 80 não faria diferença). Seria o mesmo fato triste, porém atribuível à fragilidade da vida, a dificuldade de ser mãe com duas crianças em conflito e a escassez de homens-aranha numa mesma família. Poder-se-ia depois dizer que faltavam lombadas naquele local, que a indústria automobilística não deveria vender carros tão velozes, que o Zeca Baleiro não devia estar fazendo show naquela noite, ou que D. Flávia poderia ter aceitado a carona do folgado Antônio, pois o que era suportar uma passada de mão diante da morte de seu menino? Nada. Nada mesmo voltaria atrás para que todos, ou qualquer um deles, refizessem suas escolhas.
Agora eram sós luzes vermelhas circulantes, médicos desnecessários, consolo impossível, ameaça de prisão e linchamento contra Luigi. “Se não fossem idiotas como você”, dizia outro motorista que acabara de realizar um retorno proibido para vivenciar aquela cena, “se não fosse um monstro do seu tipo”, corrigia-se, “essa criança não estaria com as tripas esmagadas.”
Eram 23 horas e 10 minutos. Pepito, 9 anos, vinha pela beirada da rodovia ao lado de sua mãe, D. Flávia, e seu irmão, Juan, de 11 anos. Este segurava um boneco do homem aranha, jogando-o para cima, aparando-o em seguida, apenas para ter o prazer de jogá-lo novamente. Pepito queria jogar também, já que o boneco era dos dois, mas a mãe já decidira que: “Juan foi quem trouxe o boneco, assim só quando ele arriar, você pode brincar com ele.” Desnecessário dizer que Pepito faria uma interpretação ampla do verbo “arriar”, condição essencial para chegar sua vez. E assim que Juan foi jogar mais uma vez o boneco, Pepito o empurrou, o lançamento saiu torto e ambos os meninos se precipitaram na direção da pista para pegá-lo. Vendo o carro de Luigi que se aproximava na sua direção, Juan parou enquanto Pepito, o desafiante, deu mais um passo, entrando na faixa de rolamento. Um grito da mãe, uma marca de freada brusca do Audi e uma criança de apenas 9 anos morta numa disputa por um herói que não podia salvar ninguém.
Se a velocidade permitida fosse 20 km a mais – o que diziam ser tecnicamente adequado -, a infelicidade de D. Flávia não se alteraria, mas Luigi não teria cometido um crime (pois aí a diferença entre não conseguir parar o carro a 100 km/h mas consegui-lo se tivesse a 80 não faria diferença). Seria o mesmo fato triste, porém atribuível à fragilidade da vida, a dificuldade de ser mãe com duas crianças em conflito e a escassez de homens-aranha numa mesma família. Poder-se-ia depois dizer que faltavam lombadas naquele local, que a indústria automobilística não deveria vender carros tão velozes, que o Zeca Baleiro não devia estar fazendo show naquela noite, ou que D. Flávia poderia ter aceitado a carona do folgado Antônio, pois o que era suportar uma passada de mão diante da morte de seu menino? Nada. Nada mesmo voltaria atrás para que todos, ou qualquer um deles, refizessem suas escolhas.
Agora eram sós luzes vermelhas circulantes, médicos desnecessários, consolo impossível, ameaça de prisão e linchamento contra Luigi. “Se não fossem idiotas como você”, dizia outro motorista que acabara de realizar um retorno proibido para vivenciar aquela cena, “se não fosse um monstro do seu tipo”, corrigia-se, “essa criança não estaria com as tripas esmagadas.”
D. Flávia desmaiou.
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A imprudência se fez carne
Se mesmo excedendo a velocidade como fez, mas os 20 km/h acima em nada tivessem contribuído para o acidente do menino (ele morreria mesmo que o carro estivesse em velocidade regular), não haveria crime e Luigi teria ido ao show. Pelo menos para as concepções mais garantistas do Direito penal seria assim. Dizer que o contrário, que em razão de ter havido a conduta imprudente e o resultado (ainda que este se tivesse produzido mesmo sob a velocidade permitida) haveria o crime, seria um retorno à versari in re illicita, uma responsabilização penal objetiva, do tipo que aquele que transgride a norma, responde por tudo que paralelamente a isso de ruim puder ocorrer. “Quem dirige sem habilitação, é sempre o culpado do acidente”, é um exemplo folclórico dessa superada teoria. Mas, de acordo, com concepções penais mais conseqüentes, se a culpa (embora presente na conduta) não se manifesta no resultado, não há crime. Trata-se de uma conseqüência lógica dos princípios do nullum crimen sine culpa e da estrita causalidade entre a conduta proibida e o resultado típico proibido.
Mas no caso de Luigi, a imprudência se manifestou no resultado. E ele deverá responder criminalmente pelo seu ato. É claro que este se deu pela intervenção caprichosa do azar. Se não houvesse a disputa entre os irmãos, se aquela os tivesse levado para outra direção, se Luigi tivesse se atrasado ou adiantado um minuto que fosse, não haveria crime. O condicionante “se”, a partícula ordinária a que se referem todos quando um detalhe os lança no inferno. Se não fosse nossa capacidade de imaginar “o que seria se...” não nos revoltaríamos tanto com a tragédia que surge em flagrante desafio a sua improbabilidade.
Se mesmo excedendo a velocidade como fez, mas os 20 km/h acima em nada tivessem contribuído para o acidente do menino (ele morreria mesmo que o carro estivesse em velocidade regular), não haveria crime e Luigi teria ido ao show. Pelo menos para as concepções mais garantistas do Direito penal seria assim. Dizer que o contrário, que em razão de ter havido a conduta imprudente e o resultado (ainda que este se tivesse produzido mesmo sob a velocidade permitida) haveria o crime, seria um retorno à versari in re illicita, uma responsabilização penal objetiva, do tipo que aquele que transgride a norma, responde por tudo que paralelamente a isso de ruim puder ocorrer. “Quem dirige sem habilitação, é sempre o culpado do acidente”, é um exemplo folclórico dessa superada teoria. Mas, de acordo, com concepções penais mais conseqüentes, se a culpa (embora presente na conduta) não se manifesta no resultado, não há crime. Trata-se de uma conseqüência lógica dos princípios do nullum crimen sine culpa e da estrita causalidade entre a conduta proibida e o resultado típico proibido.
Mas no caso de Luigi, a imprudência se manifestou no resultado. E ele deverá responder criminalmente pelo seu ato. É claro que este se deu pela intervenção caprichosa do azar. Se não houvesse a disputa entre os irmãos, se aquela os tivesse levado para outra direção, se Luigi tivesse se atrasado ou adiantado um minuto que fosse, não haveria crime. O condicionante “se”, a partícula ordinária a que se referem todos quando um detalhe os lança no inferno. Se não fosse nossa capacidade de imaginar “o que seria se...” não nos revoltaríamos tanto com a tragédia que surge em flagrante desafio a sua improbabilidade.
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Os meios presumem os fins
Havia uma finalidade proibida no comportamento de Luigi, isso dizem os sobrinhos de Welzel, consistente em guiar sua conduta não para um resultado de dano (pois então haveria dolo), mas o de guiar sua conduta por uma via alternativa à norma, ao querer atingir seu objetivo de trafegar sem se conduzir nos trilhos legais. (se você não entendeu o caráter finalista das situações culposas não se preocupe, pelo menos metade dos autores admite que também não entendeu, e dentre os que entenderam quase ninguém foi capaz de explicar).
O fundamental é que sem o azar do resultado, não haveria crime (não se esqueça que o resultado é pressuposto do crime culposo, já que este não existe em forma tentada). Verdade que no crime doloso também há a intervenção do azar. O mesmo tiro dado com a mesma intenção homicida pode não atingir a vítima, atingir-lhe apenas de raspão ou leva-la à morte. Quanto menos feliz foi o autor no seu resultado, ou quanto mais incompetente no seu tiro, maior será em tese a redução de pena a que tem direito, algo que pode chegar a um desconto de 66,3% da pena unicamente em função da sorte da vítima.
Mas então o Direito pune o azar? Sim, sobretudo nos crimes culposos. Há críticos naturalmente a essa tese, que sustentam, por exemplo, a descriminalização desses tipos (só haveria crimes dolosos ou infrações administrativas e civis), por acreditarem que os delitos de culpa, uma vez que muitos cometem imprudências, mas apenas alguns tem o azar de atingirem um resultado danoso, selecionam seus condenados entre aqueles cuja estrela não brilhou no momento em que o dano poderia ou não surgir, deixando sem imputação os temerários e irresponsáveis premiados pela sorte. Tal critério de seleção retiraria do Direito a legitimidade de repreender o réu por sua conduta descuidada, já que sua diferença em relação a muitos inocentes não foi sua conduta, mas sua má sorte.
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Havia uma finalidade proibida no comportamento de Luigi, isso dizem os sobrinhos de Welzel, consistente em guiar sua conduta não para um resultado de dano (pois então haveria dolo), mas o de guiar sua conduta por uma via alternativa à norma, ao querer atingir seu objetivo de trafegar sem se conduzir nos trilhos legais. (se você não entendeu o caráter finalista das situações culposas não se preocupe, pelo menos metade dos autores admite que também não entendeu, e dentre os que entenderam quase ninguém foi capaz de explicar).
O fundamental é que sem o azar do resultado, não haveria crime (não se esqueça que o resultado é pressuposto do crime culposo, já que este não existe em forma tentada). Verdade que no crime doloso também há a intervenção do azar. O mesmo tiro dado com a mesma intenção homicida pode não atingir a vítima, atingir-lhe apenas de raspão ou leva-la à morte. Quanto menos feliz foi o autor no seu resultado, ou quanto mais incompetente no seu tiro, maior será em tese a redução de pena a que tem direito, algo que pode chegar a um desconto de 66,3% da pena unicamente em função da sorte da vítima.
Mas então o Direito pune o azar? Sim, sobretudo nos crimes culposos. Há críticos naturalmente a essa tese, que sustentam, por exemplo, a descriminalização desses tipos (só haveria crimes dolosos ou infrações administrativas e civis), por acreditarem que os delitos de culpa, uma vez que muitos cometem imprudências, mas apenas alguns tem o azar de atingirem um resultado danoso, selecionam seus condenados entre aqueles cuja estrela não brilhou no momento em que o dano poderia ou não surgir, deixando sem imputação os temerários e irresponsáveis premiados pela sorte. Tal critério de seleção retiraria do Direito a legitimidade de repreender o réu por sua conduta descuidada, já que sua diferença em relação a muitos inocentes não foi sua conduta, mas sua má sorte.
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O medo da bagunça
Descriminalizar os tipos culposos? Absurdo! Não se assuste, o mundo não se acabaria se isso ocorresse, até porque dado que as conseqüências em termos de pena dos tipos culposos costumam ser muito rarefeitas, e as conseqüências mais pesadas nestes casos vêm das indenizações e interdições administrativas, isso já é quase um fato. O processo penal é, nesses casos, apenas uma exigência legal para dizer para a sociedade que algo será feito – e o processo é mais atormentador do que a pena em si. Pura simbologia, tanto assim o é que quando um juiz quer bancar o xerifão comunitário, ele tenta nos convencer de que não foi culpa, foi dolo eventual (uma entidade metafísica frequentemente utilizada para pôr fim ao “incômodo” in dúbio pro réu), receita que autoriza a caprichar no efeito dramático de uma pena.
Maior azar teria então Luigi se a vítima fosse tomada como emblema da impunidade no trânsito, o promotor dissesse que era caso de dolo, o juiz idem, e os sete jurados cumprissem “seu dever de dar o exemplo para que os demais homens maus saibam que os bons cidadãos estão dando um basta nesse tipo de criminalidade que atinge as crianças enquanto brincam e destroem a vida das mães de nossa cidade.”
E Luigi não foi ao show. Aguarda seu advogado atrás das grades que, a propósito, já disse que o caso é complicado...
(continua...)
Descriminalizar os tipos culposos? Absurdo! Não se assuste, o mundo não se acabaria se isso ocorresse, até porque dado que as conseqüências em termos de pena dos tipos culposos costumam ser muito rarefeitas, e as conseqüências mais pesadas nestes casos vêm das indenizações e interdições administrativas, isso já é quase um fato. O processo penal é, nesses casos, apenas uma exigência legal para dizer para a sociedade que algo será feito – e o processo é mais atormentador do que a pena em si. Pura simbologia, tanto assim o é que quando um juiz quer bancar o xerifão comunitário, ele tenta nos convencer de que não foi culpa, foi dolo eventual (uma entidade metafísica frequentemente utilizada para pôr fim ao “incômodo” in dúbio pro réu), receita que autoriza a caprichar no efeito dramático de uma pena.
Maior azar teria então Luigi se a vítima fosse tomada como emblema da impunidade no trânsito, o promotor dissesse que era caso de dolo, o juiz idem, e os sete jurados cumprissem “seu dever de dar o exemplo para que os demais homens maus saibam que os bons cidadãos estão dando um basta nesse tipo de criminalidade que atinge as crianças enquanto brincam e destroem a vida das mães de nossa cidade.”
E Luigi não foi ao show. Aguarda seu advogado atrás das grades que, a propósito, já disse que o caso é complicado...
(continua...)
Postado por Prof. Sandro Sell
Complicado é o caso, as consequências e as (possíveis) sequências.
ResponderExcluirQuanto ao argumento daqueles que preferem a descriminalização dos crimes culposos, acredito que o mesmo pode ser utilizado para os dolosos. A não ser que a argumentação se paute unicamente por presunções jurídicas, de algum mundo que se inventou e que não é, de fato, o do ser (do real). Mas sabemos que a sociologia criminal moderna, aí se incluindo também a criminologia de base crítica, também demonstraram insistentemente o caráter seletivo quanto aos injustos dolosos também.
A minha grande preocupação, porém, não vem de uma discussão meramente dogmática, que é onde os argumentos contra sempre desembocam - não por achá-los sem crétido! -, e sim de uma discussão que se paute a partir (e pela) política criminal. O legado dos positivista foi justamente o de trazer a política criminal para dentro da cena e até hoje não se conseguiu fazer outra coisa com (e sem) ela.
É aí que penso pecamos (nós juristas, acadêmicos e as academias também). Se ensina dogmática penal, mas dificilmente se compreende (e falo como aluno)essa tal dogmática para além dela mesma. Essa é a grande perplexidade dos novos operadores que saem dos bancos universitários: eles não conseguem trabalhar com o ser. A prisão do abstrato (que, aliás, foi tanto enfatizada nas salas de aula) não permite uma visão mais, ou menos, ampliada da questão criminal.
Interessante a ilustração e fico no aguardo da seguência.
Mario Barboa