quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O professor de Dogmática

Novela semanal

Capítulo I

Erros e Circunstâncias
“Um filósofo espanhol é como um toureiro alemão”


Era um professor que gostava de apresentar o Direito Penal como dotado de uma lógica quase matemática. “Se não fossem o descaso teórico dos tribunais e a moda dos funcionalismos, poder-se-ia ensinar dogmática penal com calculadora!”, exagerava o mestre para que seus alunos não o importunassem com sentimentalismos, relativismos, casuísmos ou qualquer outro ismo encontrado nos saberes efeminados de A a Z, ou seja, da Antropologia às tradições zetéticas, que, acusava, haviam profanado o templo da exatidão criminal, sistematizado a duras penas pelos autores alemães. Outras tradições penais? Não existiam. Ironizava os italianos, os franceses e os argentinos que discordavam da exatidão germânica com frases de efeito ao invés de demonstrações lógicas, ou que terminavam sua exegese com uma poesia socialista para encantar as aluninhas e os militantes. “È fácil tomá-los como apaixonantes; o difícil é tomá-los a sério.”

Sujeito irritante. Sabia disso e defendia sua posição. Ser amado é um ser-para-o-outro, ser irritante é, ao contrário, um ser-apesar-do-outro. Ser irritante é, portanto, o ápice evolutivo. Os bebês precisam ser amados para que não os abandonemos à própria sorte. A sobrevivência dos micos-leão, das borboletas e da graminha depende da mesma coisa. E vivem em constante risco. Agora reparem os criminosos, os mosquitos, o mato no jardim e tudo mais que cresce em proporção descontrolada: não são amados, são repudiados, usamos a nossa melhor técnica para eliminá-los e irritantemente triunfam. Sê irritante e triunfarás.

Receitava o estudo do Direito penal para melhorar o raciocínio, pois, diferentemente dos direitos dos comerciantes e das famílias, na seara penal as necessidades sociais deveriam render-se à exatidão de um sistema construído para ser à prova do sentimentalismo das vítimas, dos rogos das mães dos acusados ou das bagatelas do cotidiano. “Sine ira et studio!”, dizia após deduzir aos alunos a pena exata para cada caso. Sem ira nem complacência! E encarava a turma com um ar de triunfo, como se fosse um prometeu a trazer pela primeira vez o fogo ao mundo.

Por respeito à tradição, gostava de usar o método socrático para ensinar sua disciplina. Ele inseminava casos questionadores na classe e, assim como a parteira da Grécia antiga, fazia os alunos parirem as repostas adequadas à dogmática. Aplaudia os alunos que traziam à luz a norma desejada e acreditava que não consegui-lo indicava imaturidade para a vida ou um nível mais elementar de desenvolvimento na sua própria versão da escala de Piaget-Kohlberg.

Também por apego à tradição, utilizava sempre os três mesmos nomes para exemplificar situações penais, vivia, assim, semeando a discórdia entre Tício, Caio e Mélvio. Razão que o fez apoiar a mudança na lei do estupro, pois ao permitir que homem também fosse sujeito passivo de tal delito ele não precisava trabalhar com um quarto personagem nos seus exemplos, ainda mais uma mulher, gênero que, na sua concepção, sempre conspirara contra a lógica. “Mas o que seria do mundo sem mulheres e cerveja?” Piadinhas desse tipo já haviam lhe custado uma advertência no último semestre, quando fora acusado de misoginia. Defendera-se tecnicamente bem, mas, para seu desespero, a comissão processante era simpática às minorias, autores latinos e formas politicamente corretas de se expressar. Ignoraram seus argumentos de fato e de direito, leram uma poesia composta especialmente para o caso por uma aluna colombiana e advertiram formalmente o mestre.

Por essa razão, era melhor deixar as mulheres fora de seus exemplos. E agora que homem também podia ser estuprado isso se tornara factualmente possível. Só ainda não concluíra quem, dentre os três clássicos nomes, seria a vitima de tão infamante crime. Depois de muito refletir, achou que Mélvio faria tal papel. E desde esse dia passou a ter um profundo desprezo por tal personagem. Todos os casos que envolviam ser vítima de delitos sexuais faziam Mélvio voltar à cena, sempre em posições que espoliavam sua dignidade de vítima. Os alunos encamparam a idéia e naquelas turmas Mélvio passou a ser sinônimo de homossexual. “Isso é coisa de Mélvio”, dizia Jorge a Pedro quando este recusara o pedido da bela Roxana para estudarem juntos.

No mais, era tecnicamente exemplar. Não faltava às suas aulas. Não se atrasava. Estava no ápice da formação acadêmica. Era solteiro, sem filhos, quase bonito e tinha sobrenome alemão. Andava com aprumo prussiano, dirigia uma Mercedes, torcia pelo Bayer de Munique, lia Hegel no original, dizia-se parente longínquo de Welzel, mas era natural de Biguaçu, em Santa Catarina. Não chegava a considerar essa última informação um defeito, mas sempre que era obrigado a decliná-la a uma moça que solicitava seus dados, acrescentava: “A naturalidade de um homem é um acidente. Mera contingência.” Frase que era tomada pelas ditas moças dos guichês com a devida indiferença.

Seu amor pela Alemanha aparentemente não era correspondido. Confundido com um trambiqueiro de Biguaçu que à época andava por lá, fora deportado do país na primeira vez que desembarcara em solo germânico. Não se zangou. Atribuiu tal erro a uma empresa francesa que, então, desenvolvera um software para a Imigração da Alemanha. Mas preferiu não tentar voltar à sua mítica pátria. Comprou uma casa em Pomerode, falava em alemão com os vizinhos e esperava publicar um tratado de Direito penal em 12 tomos que faria com que sua pátria sonhada se visse forçada – por pressão intelectual – a convidá-lo, com honras oficiais, a retornar ao lugar aonde quase chegara e de onde em espírito jamais sairia.

Era, enfim, ontologicamente alemão, colocado em solo brasileiro, para que nesse clima tão adequado à criação de batráquios (Monteiro Lobato) mostrasse como a vontade de potência (wille zur macht) fazia destacar a astúcia do lobo em meio à ingenuidade dos cordeiros. Um dia se ouviria em pleno Vale do Itajaí um uivo emitido na língua de Goethe. E sob o som triunfante de Wagner, o destino do professor se cumpriria. Seria repatriado. Até lá daria as aulas que mostraremos nos próximos capítulos. Aulas dadas originariamente em alemão, razão pela qual nos será difícil sermos fieis aos aspectos mais técnicos da dogmática.
Fim do primeiro capítulo
Prof. Sandro Sell

2 comentários:

  1. Sandro, te admiro pacas. Já havia lhe reclamado pelo fato de não postar mais no seu antigo blog. Vou virar seguidor deste agora, até pelo time de cobras criadas que também fazem parte. Parabéns velho!

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