quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Perecível natureza humana...

Para explicar a natureza do ser humano, várias metáforas já foram propostas. Numa delas, o indivíduo é comparado a uma cebola. Nada mais seríamos do que uma sobreposição de cascas sem que nenhuma delas fosse a essencial. Sob as cascas, apenas mais cascas. Essas diferentes camadas de cascas são aquilo que aparentamos para nós e para os outros. Mas, o mais grave: somos apenas essa justaposição de aparências. Se o descascador da cebola não puser um limite à retirada das camadas, não sobrará vegetal algum. Se retiramos do indivíduo suas “máscaras” sociais não encontraremos nenhum rosto a servir de base. Portanto, quando se diz: “Se aquela pessoa não fosse bonita e rica, ela não seria assim arrogante”, a partir dessa metáfora teríamos de dizer: “Se essa pessoa não possuísse dinheiro e beleza não seria ela, seria outra pessoa”. Assim como se à cebola lhe faltassem as cascas, não seria mais uma cebola.
Uma segunda metáfora compara o ser humano a uma noz. Temos uma casca dura, compacta e resistente. Mas, por trás dela, há uma semente, nossa verdadeira natureza. Quem vê a dureza da casca não pode antever a textura da semente. Muitas filosofias, religiões e práticas terapêuticas andam à cata dessa semente por suposto escondida sob camadas de impurezas. Querem libertar o verdadeiro “eu” do indivíduo, preso à inautenticidade de suas contingências. Nesse sentido, riqueza e beleza são cascas que deturpam a visualização da essência. Não é à toa que, desde a Antigüidade, iniciações religiosas passam pelo martírio do corpo e pelo abandono de riquezas, pois que elas mascarariam nossa essência.
Uma terceira metáfora vê a identidade humana como um diretor de teatro a alternar máscaras por pura conveniência do espetáculo. O filósofo Bertrand Russell (1872-1970) aconselhava: “Acredito que uma pessoa civilizada, homem ou mulher, tem uma imagem de si e sente-se incomodada quando acontece algo que parece empaná-la. O melhor remédio é não ter só uma imagem, mas uma galeria delas, e selecionar a mais adequada para o incidente em questão. Se alguns dos retratos são um pouco ridículos, e daí?, não é prudente nos vermos o tempo todo como heróis de tragédia clássica. Mas também não recomendo que alguém se veja sempre como um palhaço de comédia, pois os que fazem isso ficam ainda mais irritantes; precisamos de um pouco de tato para escolher o papel mais adequado à situação” .
Claro que podemos também definir o ser humano não por uma metáfora, mas por seu atributo de "essência": somos seres racionais? Passionais? Filhos de Deus? Bípedes com cérebros avantajados e 46 cromossomos? Um ser angustiado que,  já não bastassem as doenças do corpo, ainda utilizou sua fértil imaginação para criar pecados e infernos para se atormentar? Seríamos, em outra linha, o maior escárnio da evolução? Um cérebro capaz de antever a certeza da morte, plantado num corpo que não tem como fugir dela? 
Talvez sejamos heróis, porque, apesar de rondados pelo espectro da morte desde o berço, ainda conseguimos compor canções para embalar novas crianças, na esperança, talvez, de que um dia -quem sabe um dia - nosso descendente futurista dará um jeito nesse negócio de ter que se retirar da vida com menos de 100 anos, e torne-se o primeiro imortal. Esse será o primeiro vingador da nossa espécie, o primeiro que fez jus ao enorme cérebro que possui. Por enquanto todas as nossas invenções e maquininhas são apenas isso: o ensaio-e-erro do único sonho realmente significativo: que alguém - um de nós - mostre a que veio e possa berrar do alto do Himalaia que agora chega dessa indecência de ter que morrer!

Sandro Sell

2 comentários:

  1. Oi Prof. Sandro, Freud já dizia que o que nos move é a pulsão de morte, sim, somos perecíveis e é isso que nos move - quem sabe nos leve ao Himalaia. Belo texto, um abraço Ingrid

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  2. Penso que esse nosso "problema" com a morte está na nossa incessante insatisfação com o mundo, com nosso próprio ser. Nunca iremos estar satisfeitos com alguma coisa, é fato. Quanto mais com o desconhecido, a morte. Claro que isso também teve seu lado positivo, pois, foram insatisfações que motivaram cientistas e/ou inventores a criar seus experimentos. Mas... será que viver 80 ou 90 anos já não é suficiente?

    Muito bom o texto, professor. Sempre um novo aprendizado ler seus artigos.

    Abraço

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