sexta-feira, 16 de julho de 2010

Cláusula Miranda

Você tem o direito de ficar calado!
 Em 1963, Ernesto Miranda foi preso em Phoenix, Arizona  por roubar 8 dólares de um bancário, e acusado de assalto à mão armada. Na delegacia, sem advogado, ele confessou não apenas esse crime, mas também um estupro que teria ocorrido 11 dias antes de sua prisão. Seus advogados, então, apelaram, sustentatando que ele não conhecia o direito de não ser obrigado a auto-incriminação.
Em 1966, o caso conhecido como Miranda vs. Arizona, chegou à Suprema Corte dos EUA,  sendo decidido que a não informação do preso sobre seus direitos constitucionais básicos de: presuncão de inocência,  permanecer em silêncio e de poder ter acesso a assistência de advogado, invalidam a prisão e a confissão do acusado.
Então, a fórmula dos filmes:
You have the right to remain silent. Anything you say can and will be used against you in a court of law. You have the right to speak to an attorney, and to have an attorney present during any questioning. If you cannot afford a lawyer, one will be provided for you at government expense.

No Brasil, os presos possuem os mesmos direitos constitucionais, só que como aqui somos mais alfabetizados do que  os norte-americanos, uma declaração equivalente só é encontrada - por escrito - nos termos do interrogatório policial.
Esse descaso com a informação de direitos no Brasil é lamentável.  Isso parece decorrer do fato de que aqui - no país da informalidade abusiva -  fórmulas dessa natureza são vistas pelas  autoridades como meras frescuras sem-sentido ou, quando muito, problemas alheios às suas funções.
É como se prestar informações sobre direitos fundamentais ao preso fosse um assunto de menor relevância, ou um produto privado, que deve ser comprado unicamente na banca do seu próprio advogado.

Você tem o dever de ficar calado!
“Quando alguém é detido, ao menos nos filmes, se lhe permite guardar silêncio, porque ‘qualquer coisa que diga poderá ser usada contra você´... Há nessa advertência um ânimo estranho –contraditório – de não querer jogar sujo de todo. É dizer, se informa ao réu que as regras vão ser sujas a partir de agora, se o informa ou lhe recorda que se irá contra ele de qualquer maneira possível e se aproveitarão das possíveis torpezas, incongruências e erros – não é já um suspeito, mas um acusado cuja culpa vai se tentar demonstrar, seus álibis serão ironizados, a imparcialidade já não lhe assiste, não entre hoje e o dia em que compareça em juízo, - todo esforço irá se encaminhar na obtenção de provas para sua condenação, toda vigilância, escuta e investigação se voltará para indícios que o incriminem e reforcem o acerto da decisão de tê-lo detido. E, no entanto, se lhe oferece a oportunidade de calar, quase se exige dele; em todo caso se o faz saber que esse direito seu, que quiçá ignorava, e que, portanto, se está nele despertando a salvadora idéia: de não abrir a boca, de não negar sequer o que se está lhe imputando, de não expor-se ao perigo de defender-se sozinho; calar se mostra ou lhe é apresentado como o mais prudente sob todas as luzes, e o que pode salvar-nos, ainda que saibamos que somos culpados, a única maneira de que esse jogo sujo anunciado fique sem efeito ou apenas possa se pôr em prática, ou ao menos não com a involuntária e ingênua colaboração do réu: `Você tem o direito de ficar calado`, o chamam de a Fórmula Miranda na América ... a mim me aplicaram uma vez ali, faz muito tempo ou não tanto, porém a polícia a recitou incompleta, imperfeitamente, se esqueceu de dizer “diante de um Tribunal”, ao dizer-me rapidamente a famosa frase... houve testemunhas de sua omissão e não foi válida minha detenção por essa razão. E ao mesmo estranho espírito responde esse outro direito do processado, o de não declarar contra si mesmo, a não prejudicar-se verbalmente com seu relato ou suas respostas ou contradições e balbuceos. A não se danar narrativamente e a mentir portanto.
O jogo é na realidade tão sujo e interessado que não há sistema judicial que se possa presumir de justo com premissas semelhantes, e quiçá não haja justiça possível nesse caso, jamais em nenhum lugar, a justiça uma fantasmagoria e um conceito falso. Porque o que se diz ao acusado vem a ser isto: `Se declaras algo que nos convenha ou seja favorável a nossos propósitos, acreditaremos em ti e o tomaremos em conta, e contra ti o usaremos. Se pelo contrário alegas algo em teu benefício ou defesa, algo para ti exculpatório e para nós inconveniente, não acreditaremos em nada e serão palavras ao vento, dado que o direito de mentir te assiste e damos por presumido que a ele recorre todo mundo, quer dizer, todos os criminosos. Se te escapa uma afirmação que te inculpe, ou tropeças em contradição flagrante, ou se confessas abertamente, essas palavras terão seu peso e obrarão contra ti: as ouviremos, as registraremos, tomaremos nota, as daremos por pronunciadas, serão permanentes, as incorporaremos e serão tua responsabilidade. Qualquer frase que ajude a exonerar tua culpa, ao contrário, será passageira e descartada, faremos ouvidos surdos e caso omisso, não contará, será ar, vapor, fumaça, e em teu favor não pesarão. Se te declaras culpado, o julgaremos certo e o tomaremos a sério; se inocente, tão só como uma piada nos registros... Se dá assim por presunção de que tanto o inocente quanto o culpado se declararão o primeiro, logo a sua fala não fará distinção entre eles, mas os manterão igualados, nivelados. E é então que se acrescenta: “Podes guardar silêncio”, ainda que tampouco isso vá distinguir o inocente do culpado. (Calar, calar, a grande aspiração a que ninguém cumpre nem depois de morto, e, no entanto, é o conselho que nos é dado nos momentos mais graves: ´Cala, cala e não digas nada, nem sequer para salvar-te. Guarda a língua, esconde-a, engole-a, ainda que te afogue, como se a houvesse comido o gato. Cala e assim te salva.´.)"
Javier Marías – Tu rostro mañana

Tradução e postagem: Prof. Sandro Sell

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